terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

NADA DE NOVO NO FRONT




Erich Maria Remarque


Em 1929 era publicado, na Alemanha, o livro Nada de Novo no Front de Eric Maria Remarque. Trata-se de uma obra condenatória dos horrores da Primeira Guerra Mundial, escrita por um homem que serviu no exército alemão tendo sido, inclusive, seria­mente ferido. Remarque viu de perto o morticínio das trincheiras e seu livro exerceu profunda influência sobre o pensamento pacifista. Basta lembrar que foi proibido, na Alemanha, quando os nazistas assumiram o poder.


Os trechos selecionados procuram enxergar a guerra por um outro viés, através da ótica de quem esteve no front, ameaçado permanentemente pela destruição e pela morte. O autor, na caloria, fala às gerações futuras: ''Este livro não pretende ser, libelo nem uma confissão: apenas procura mostrar o que foi uma geração de homens que, mesmo tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra.''


Através do relato do soldado Paul Báumer toma-se contato não apenas com os horrores da guerra mas, também, com os so­nhos e esperanças frustradas de toda uma verdadeira "geração perdida''.






Estamos no outono. Dos veteranos, já não há muitos. Sou o ultimo dos sete colegas de turma que vieram para cá.


Todos falam de paz e armistício. Todos esperam. Se for outra decepção, eles vão se desmoronar. As esperanças são muito fortes; é impossível destruí-las sem uma reação brutal. Se não houver paz, então haverá revolução.


Tenho catorze dias de licença, porque engoli um pouco de gás. Num pequeno jardim, fico sentado o dia inteiro ao sol. O armistício virá e breve, até eu já acredito agora. Então iremos para casa.


Neste ponto meus pensamentos param e não vão mais adiante. O que me atrai e me arrasta são os sentimentos. E a ânsia de viver, é a nostalgia da terra natal, é o sangue, é a embriaguez da salvação. Mas não são objetivos.


Se tivéssemos voltado em 1916, do nosso sofrimento e da força de nossa experiência poderíamos ter desencadeado uma tempestade. Mas se voltarmos agora estaremos cansados, quebrados, deprimidos, vazios, sem raízes e sem esperanças. Não conseguiremos mais achar o caminho.


E as pessoas não nos compreenderão, pois antes da nossa cres­ceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará pa­ra suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e depois de nós crescerá uma geração semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simples­mente se resignarão e a maioria ficará desorientada: os anos passa­rão e, por fim, pereceremos todos.


Mas talvez tudo que penso seja apenas melancolia e desalento que desaparecerão quando estiver de novo sob os choupos e ouvir novamente o murmúrio das suas folhas. É impossível que já não existam a doçura que fazia nosso sangue se agitar, a incerteza, o futuro com suas mil faces, a melodia dos sonhos e dos livros, os sus­surros e os pressentimentos das mulheres. Tudo isso não pode ter desaparecido nos bombardeios, no desespero e nos bordéis. Aqui as árvores brilham, alegres e douradas, os frutos das sorveiras têm ma­tizes avermelhados por entre a folhagem; as estradas correm brancas para o horizonte, os rumores de paz fazem as cantinas zumbirem como colmeias.


Levanto-me.


Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar mais nada de mim, não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei. Mas enquanto existir dentro de mim — queira ou não esta força que em mim reside e que se cha­ma eu —, ela procurará seu próprio caminho.


Tombou morto em outubro de 1918, num dia tão tranquilo em toda a linha de frente que o comunicado se limitou a uma frase: "Nada de novo no fronte".


Caiu de bruços e ficou estendido, como se estivesse dormindo. Quando alguém o virou, viu-se que ele não devia ter sofrido muito. Tinha no rosto uma expressão tão serena que quase parecia estar sa­tisfeito de ter terminado assim.


Remarque, Erich Maria. Nada de Novo no Front. São Paulo, Circulo do Livro, s/d, pp. 223-24.


A VIDA (?) NAS TRINCHEIRAS


A Primeira Guerra Mundial apresentou duas fases bastante nítidas: num primeiro momento, a guerra de movimento, logo se­guida, devido ao flagrante equilíbrio entre os dois lados em luta, de uma guerra de posições fixas, em que as trincheiras tornaram-se comuns. Exércitos inteiros, contando com milhares de homens en­fiados em trincheiras, separados por alguns quilómetros de dis­tância, passaram longos meses tentando avançar algumas centenas de metros.


A trincheira, verdadeira marca registrada da Primeira Guerra Mundial, é o reflexo do impasse tático, do equilíbrio de forças e da supremacia defensiva. A vida dentro delas, através de relatos de soldados ingleses, franceses, alemães, etc., era um verdadeiro in­ferno. Ainda hoje, as descrições que nos chegaram causam espanto e horror ante o grotesco do espetáculo.


Os trechos selecionados revelam com clareza o cotidiano marcado pelo medo, pela fome, pelo desespero, pela nulidade da vida, em síntese, pela degradação moral a que chegou o ser huma­no. Mas, em um ou outro relato é possível, também, perceber que alguma solidariedade, independente da cor da farda que se está usando, ainda sobrou, talvez para lembrar que, apesar de tudo, os homens ainda eram homens.


1. "A mesma velha trincheira, a mesma paisagem, Os mesmos ratos, crescendo como mato, Os mesmos abrigos, nada de novo, Os mesmos e velhos cheiros, tudo na mesma, Os mesmos cadáveres no fronte. A mesma metralha, das duas às quatro, Como sempre cavando, como sempre caçando, A mesma velha guerra dos diabos." A. A. M Une: Combate no Somme)


2. "No alto, nas linhas incompletas, os rapazes ficavam a noite toda - tinha caído muita neve e a chuva completou sua evaporação em água. (...) Uma estaca de madeira ajudara a formar uma camada de terra sobre as paredes encharcadas e um homem pode orgu­lhar-se disso: parecer parte de uma trincheira. A chuva, a chuva impiedosa, ensopando e entorpecendo — e, assim, passar a noite inteira. (...) Acabo de chegar de um lugar onde jazem 50.000 corpos, ossos e arame farpado por toda parte. Os próprios es­queletos embranqueciam se alguém saía pela colina terrivelmente atacada e destroçada. Botas e ossos saindo pelas paredes do abri­go da gente e, no entanto: lá se é feliz." (Sargento Ernest Broughton)


3. "Ainda estou atolado nesta trincheira. (...) Não me lavei, nem mesmo cheguei a tirar a roupa, e a média de sono, a cada 24 ho­ras, tem sido de duas horas e meia. Não creio que já tenhamos começado a rastejar como animais, mas não acredito que me ti­vesse dado conta se já houvesse começado: é uma questão de somenos."


(Capitão Edwin Gerará Venning, França)


4. "As rações chegam às trincheiras inglesas em pacotes de dez, em mulas, e então são levadas adiante por mulas humanas. Não foi trazida água, mas o gelo, das crateras formadas pelas bombas, foi dissolvido para esse fim. (...) Logo passou-se a usar um machado para encher os caldeirões com gelo e obter grandes quantidades de água. Nós a usamos para fazer chá durante vários dias, até que um cara notou um par de botas plantado (...) e descobriu que elas estavam enfiadas em um corpo. (...) Em geral, para dormirmos aquecidos, deitávamo-nos uns junto aos outros, dividindo os co­bertores — cada homem levava dois. O frio, no entanto, se mos­trou preferível à lama (formada com o degelo). (...) Pelo menos, podíamos nos mover." (Sargento E. W. Simon, rio Somme)


5. "O campo de batalha é terrível. Há um cheiro azedo, pesado e penetrante de cadáveres. Homens que foram mortos no último outubro estão meio afimdados no pântano e nos campos de na­bos em crescimento. As pernas de um soldado inglês, ainda en­voltas em polainas, irrompem de uma trincheira, o corpo está em­pilhado com outros; um soldado apoia o seu rifle sobre eles. Um pequeno veio de água corre através da trincheira, e todo mundo usa a água para beber e se lavar; é a única água disponível. Ninguém se importa com o inglês pálido que apodrece alguns passos adiante. No cemitério de Langermark os restos de uma matança foram empilhados e os mortos ficaram acima do nível do chão. As bombas alemãs, caindo sobre o cemitério, provoca­ram uma horrível ressurreição. Num determinado momento, eu vi 22 cavalos mortos, ainda com os arreios. Gado e porcos ja­ziam em cima, meio apodrecidos. Avenidas rasgadas no solo, inúmeras crateras nas estradas e nos campos." (De Um Fatalista na Guerra, de Rudolf Binding, que serviu nu­ma das divisões da Jungdeutschland.)


6. "Estamos tão exaustos que dormimos, mesmo sob intenso baru­lho. A melhor coisa que poderia acontecer seria os ingleses avan­çarem e nos fazerem prisioneiros. Ninguém se importa cónosco. Não somos revezados. Os aviões lançam projéteis sobre nós. Ninguém mais consegue pensar. As rações estão esgotadas — pão, conservas, biscoitos, tudo terminou! Não há uma única gota de água. É o próprio inferno!"


(De uma carta encontrada no bolso de um praça alemão na ba­talha de Somme)


7. "Ao ouvir alguns gemidos quando eu ia para as trincheiras, olhei para um abrigo ou buraco cavado ao lado e achei nele um jovem alemão. Ele não podia se mover porque suas pernas estavam que­bradas. Implorou-me que lhe desse água, eu corri atrás de alguma coisa e encontrei um pouco de café que logo lhe dei para beber. Ele dizia todo o tempo 'Danke, Kamerad, danke, danke' (Obri­gado, Camarada, obrigado, obrigado). Por mais que odeie os boches, quando você os está combatendo, a primeira reação que ocorre ao vê-los caídos por terra e feridos é sentir pena. (...) Nossos homens são muito bons para com os alemães feridos. Na verdade, gentileza e compaixão com os feridos, foram talvez as únicas coisas decentes que vi na guerra. Não é raro ver um sol­dado inglês e outro alemão lado a lado num mesmo buraco, cui­dando um do outro, fumando calmamente."

(Tenente Arthur Conway Young, França, 16 de setembro de 1916)


Roberts, J. M. (org.). História do Século XX. São Paulo, Abril, 1974, v. 2, pp. 796, 953, 960 e 961



ATIVIDADE:

1) Descreva em 10 linhas de que forma a primeira guerra foi marcante para os soldados que dela participaram.

2) Imagine que você é um soldado da primeira guerra e está numa trincheira a uma semana. Crie uma carta de 10 linhas descrevendo o que está vivendo.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

ESPANHÓIS CHEGARAM ANTES DE CABRAL NO BRASIL

Em 1498, os reis católicos da Espanha estavam perdendo sua paciência com seu descobridor genovês. Como combinado antes da viagem, o navegante foi nomeado governador das Índias Ocidentais e explorou as terras descobertas com exclusividade. Só que, mesmo que se confirmasse a cada vez mais improvável possibilidade de que aquilo fosse o Oriente - como Colombo defendeu até a morte -, ninguém achava especiarias, ouro ou prata ali.
Para apressar a exploração do Novo Mundo, os soberanos espanhóis decidiram permitir que empreendedores particulares montassem viagens ao outro lado do Atlântico. Ao saber da notícia, um navegante da cidade de Palos de la Frontera animou-se em organizar sua expedição. Ele havia comandado a caravela Nina na primeira viagem de Colombo, enquanto seu irmão conduzira a Pinta. Juntando seus recursos e alguns empréstimos, montou uma expedição com 4 caravelas e partiu para o Novo Mundo em novembro de 1499. Seu nome era Vicente Yañez Pinzón.
"A primeira menção que se faz a Vicente é de que aos 15 anos percorria a costa catalã com uma caravela, assaltando navios com trigo, para impedir que a cidade passasse fome durante a guerra contra Portugal, entre 1475 e 1479", afirma Julio Izquierdo, historiador da Universidade de Huelva e autor de uma biografia sobre a família Pinzón.
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Sucursal de Portugal
Izquierdo explica que Palos, a 50 km de Portugal, era uma espécie de sucursal espanhola da ciência náutica lusitana. "Os portugueses eram, ao mesmo tempo, inimigos e mestres de navegação daquele povo. Na segunda metade do século 15, era a cidade que fornecia marinheiros para o reino de Castela." Os Pinzóns, por sua vez, eram uma das mais renomadas famílias de marinheiros da vila. Não foi por acaso, enfim, que a expedição de Colombo saiu de Palos, com os Pinzóns no comando de 2 das suas 3 naves.

A expedição zarpou de Palos no dia 19 de novembro com uma tripulação muito familiar, com dezenas de amigos e parentes - primos, sobrinhos, tios. O irmão mais velho, Martin Alonso, morrera logo depois de voltar da América, mas o mais novo, Francisco Martin, fora com Colombo na terceira viagem e comandou uma das caravelas na nova missão. As 4 caravelas fizeram uma escala em Cabo Verde e saíram de lá seguindo o vento que soprava para sudoeste.

A pequena esquadra de Pinzón tornou-se a primeira expedição espanhola a cruzar a linha do Equador. O que era um problema, pois, diferentemente dos portugueses, eles ainda não sabiam navegar em alto-mar no Hemisfério Sul. Sem a Estrela Polar, eles simplesmente não tinham referências. Meio perdidos, levados pelo vento e com a ajuda de uma tempestade, eles avistaram terra e desembarcaram no Brasil em 26 de janeiro.
Viagem comprovada
Pinzón e alguns tripulantes gravaram o nome dos reis de Castela em árvores e rochas e, na presença de um escrivão, tomaram posse da terra em nome dos soberanos, batizando-a como Cabo de la Consolación. Registros da época afirmam que o local do desembarque foi o cabo que os portugueses chamariam de Santo Agostinho, que persiste com o mesmo nome, em Pernambuco, embora alguns historiadores defendam que o tal cabo fosse a Ponta de Mucuripe, em Fortaleza. Essa é uma das poucas controvérsias que existem acerca da viagem de Pinzón, pois sua existência e seus passos são muito bem registrados.

A segunda viagem da qual falaremos, a do português Duarte Pacheco, como vimos, é um acontecimento plausível, mas sem provas. Não é o caso da viagem de Pinzón. Tudo o que se passou em sua expedição foi descrito em detalhes por pelo menos dois cronistas, que entrevistaram o comandante e outros tripulantes pessoalmente para publicar os textos um ano depois.

Além disso, existe um mapa feito ainda em 1500 pelo navegador espanhol Juan de la Cosa, com detalhes de todo o trecho percorrido por Pinzón. Nele, é possível ler a frase "este cabo foi descoberto por Vicente Yañez", no ponto em que o marinheiro de Palos desembarcou. Historiadores portugueses e espanhóis concordam que ele foi, de fato, o primeiro europeu a chegar ao litoral brasileiro, 3 meses antes de Cabral.
Reprodução/Jordi Toronell
Vicente Yañez Pinzón (ao fundo) e Martín Alonso Pinzón (à frente)
Um outro enigma
Uma passagem da viagem de Pinzón, no entanto, revela outro enigma sobre as primeiras expedições ao Brasil. Rumando para oeste, o descobridor encontrou o rio Amazonas e passou cerca de dez dias em seu curso, explorando a região. No caminho, as caravelas encontraram um grupo de indígenas. Um grupo armado, dividido em 4 botes, desceu para fazer contato, oferecendo um guizo aos indígenas. Os índios, por sua vez, atraíram os espanhóis com o que os cronistas descrevem como um bastão de ouro.

Na tentativa de pegar o "presente", o grupo foi emboscado e seguiu-se uma batalha na qual morreram 8 tripulantes. Como os homens fugiram sem pegar o tal bastão, não se sabe se era mesmo de ouro ou não. O fato é que os índios usaram a isca certa. Como sabiam do interesse desses homens vestidos e barbudos pelo ouro? Será que, antes disso, eles encontraram Duarte Pacheco? Isso jamais saberemos.
O outro visitante
A experiência no Amazonas, que Pinzón batizou de Santa María de la Mar Dulce, teve outra consequência para a expedição. Enquanto subia e descia o rio, ela foi ultrapassada pelo grupo de Diego de Lepe. Pois é, Cabral não foi nem o primeiro nem o segundo a chegar, comprovadamente, à costa brasileira. Lepe, primo de Pinzón, saíra da Palos 20 dias depois e empreendeu uma "viagem irmã", chegando ao litoral brasileiro dois meses antes de Cabral.

Ao bater no cabo de Santo Agostinho, Lepe navegou algumas milhas para o sul e voltou, percorrendo em seguida a mesma trajetória de Pinzón. Sua viagem está descrita, ainda que com menos detalhes, pelos mesmos cronistas da época, que também o entrevistaram. Logo, enquanto Pinzón foi o primeiro a percorrer o trecho do cabo de Santo Agostinho ao Amazonas, Lepe é considerado o descobridor do trecho que vai do rio Amazonas até o Essequibo, atual fronteira da Venezuela com a Guiana.

Os dois viajantes ainda seguiriam a costa sul-americana até o golfo de Pária, antes de subir ao Caribe e regressar à Europa. Essas regiões, no entanto, já haviam sido navegadas e mapeadas por Colombo e por Juan de la Cosa - aquele mesmo autor do mapa que atesta a viagem de Pinzón. O curioso é que, diferentemente do que aconteceu com Duarte Pacheco, boa parte do litoral que os dois percorreram estava na zona de soberania portuguesa de acordo com o Tratado de Tordesilhas.
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Aqui há dragões
Certamente Cabral não foi o primeiro, mas isso não encerra a questão. Porque portugueses tratavam suas viagens como um segredo atômico da guerra fria. A pena para contrabandear mapas era a morte.

A pena de morte para cartógrafos que contrabandeassem mapas não impediu, porém, que o italiano Alberto Cantino conseguisse uma cópia do mapa mais completo que havia do mundo daquela época, uma "carta náutica para as ilhas recentemente encontradas na região das Índias".

O espião contratou um personagem misterioso, que teria levado 10 meses para reproduzi-lo, e remeteu a obra ao duque de Ferrara, na Itália. A cópia entrou para a história como o Planisfério de Cantino e serviu de referência para outros mapas europeus do século 16. Com 218 x 102 cm, revelava um mundo nunca visto: grandes partes da Ásia e as terras descobertas por Colombo e Cabral na América.

Misteriosamente, a carta também mostra detalhes do litoral norte brasileiro, que até 1502 não fora visitado oficialmente. O que sugere que o mapa foi elaborado com a ajuda de outros navegantes, que teriam chegado ao Brasil antes de Cabral.
Domínio Público
Ilha mitológica Hy-Brazil a oeste da Irlanda, em mapa de Mercator
Não há nenhuma evidência direta de que Dom João II conhecia terras por aqui. Existem, porém, indícios de que Portugal estava explorando essas bandas desde o regresso de Bartolomeu Dias do Cabo da Boa Esperança, em 1489.

Um deles são registros de mantimentos, como uma encomenda de mil quintais de biscoitos (pão assado duas vezes, usado como alimento nas viagens), suficiente para abastecer 2 ou 3 caravelas por 2 anos. Outro indício vem de espiões castelhanos, que avistaram a saída de 4 caravelas da ilha da Madeira, em 1493, navegando para Oeste.

Apesar da falta de provas, vários historiadores acreditam que Dom João organizou viagens de exploração pelo Atlântico, ao sul e ao Ocidente, para estudar os melhores ventos para chegar ao cabo da Boa Esperança. Só assim os navegantes portugueses teriam descoberto a "volta pelo largo", rota que os fazia passar muito perto do nordeste brasileiro. Será que, nessas viagens, eles teriam visto praias?
Domínio Público
Duarte Pacheco Pereira
Primeiro português
Tem a ver com o Tratado de Tordesilhas, pelo qual Espanha e Portugal repartiram o mundo em si - e o qual nenhuma outra potência naval europeia reconheceria. Depois de passar 3 anos adiando uma viagem conjunta de demarcação do meridiano de Tordesilhas, o rei teria enviado uma pequena e secreta expedição para verificar onde, exatamente, passava a linha de Tordesilhas. Essa viagem, comandada por Duarte Pacheco Pereira, veterano da expedição de Bartolomeu Dias ao Cabo da Boa Esperança, teria sido a primeira a visitar o litoral brasileiro, em 1498.

Duarte Pacheco tinha vasta experiência em navegação atlântica, determinação de latitudes e longitudes, em viagens de exploração na África e fora consultor técnico das negociações de Tordesilhas, o que fazia dele um homem extremamente preparado para a missão de Dom Manuel.

O principal indício da viagem de Duarte Pacheco é um livro que ele escreveu entre 1505 e 1508, chamado Esmeraldo de Situ Orbis, narrando seus serviços prestados ao rei. Nele, Duarte Pacheco diz que Dom Manuel lhe encarregara de "descobrir a parte ocidental, passando além a grandeza do Mar Oceano, onde é achada uma tão grande terra firme".

Pacheco teria saído da ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, em novembro de 1498 - menos de 6 meses depois de Colombo zarpar do mesmo local. Tomando o rumo sudoeste, seguiu ventos alísios que sopram diretamente para o Brasil. No mesmo mês, avistou terra, dois graus abaixo do Equador. Dali, navegou para oeste, seguindo a corrente das Guianas.
Evidências
Há poucas dúvidas de que a viagem foi realmente feita e de que ele mesmo a comandou. "O livro era escrito para o rei, sobre missões a serviço do próprio rei. Duarte Pacheco não mentiria", explica o historiador Domingues.

Já as dúvidas sobre o real destino de Duarte Pacheco são maiores porque o livro nunca foi impresso, talvez por guardar segredos muito valiosos - mais precisamente uma lista com as coordenadas geográficas de todos os portos descobertos por lusitanos desde o infante Dom Henrique. E os manuscritos que restaram, encontrados apenas no século 19, não têm os mapas a que o autor se refere na obra. O texto, no entanto, descreve com minúcias a vegetação e os povos encontrados por Duarte Pacheco em sua missão.

No livro A Construção do Brasil, o historiador português Jorge Couto reúne vários indícios de que a tal "grande terra firme" que Pacheco visitou realmente é o Brasil, mais precisamente o trecho compreendido entre o litoral maranhense e o estuário do rio Amazonas.

Outros indícios da viagem de Duarte Pacheco apresentados por Couto são documentos de época e o trabalho de outros historiadores. Um dos mais importantes é o Memorial de la Mejorada, documento castelhano de cerca de 1499, que afirma categoricamente que Dom Manuel violou o Tratado de Tordesilhas recém-assinado, enviando expedições que navegaram para oeste do meridiano em áreas da coroa espanhola.
O rebelde Cabral
Pedro Álvares Cabral saiu de Portugal com destino a Índia em março de 1500. Não há dúvida de que chegou, tomou posse, rezou missa, fincou cruz e deu início ao processo que tornou o Brasil uma colônia portuguesa - e por isso mesmo ficou com a fama de descobridor. A controvérsia sobre sua viagem é se teria chegado por acidente ou intenção, mas até isso não é mais mistério. Sabe-se que, no local em que deveria tomar o rumo leste, os ventos sopravam para esse mesmo lado. Logo, é improvável que tenha vindo para oeste por acidente.

O que se discute é se veio por ordem do rei ou dos conselheiros reais, nobres e comerciantes que discordavam da viagem para a Índia. "Os mercadores privados e a maioria do conselho do rei preferiam a expansão no Atlântico, onde não era necessário entrar em conflito com os muçulmanos e os monopólios reais eram restritos a alguns portos e produtos", explica o historiador Thomaz.

"Para o rei, o Brasil constituiria somente uma escala para a Índia, mas para os mercadores privados era a perspectiva de um novo mundo a explorar." Portanto, é bem possível que o fidalgo Cabral tenha resolvido contrariar o rei.
Domínio Público
Mapa de Cantino, de 1502, mostrando a Linha de Tordesilhas (à esquerda)
Final triste
A hipótese poderia explicar o fato de ter sido "esquecido" pelo monarca, que nunca mais o escolheu para qualquer missão em mar ou em terra. Cabral morreu sem glória, sem retrato ou busto de descobridor do Brasil. Os outros descobridores não tiveram melhor sorte.

Duarte Pacheco ainda foi tratado com honra por Dom Manuel, que lhe deu o comando de uma armada para as Índias e o cargo de governador de São Jorge da Mina - posições muito lucrativas. Com a ascensão de Dom João III, porém, ele seria perseguido e preso sob a acusação de desvio de ouro.

Pinzón faria outra viagem ao Novo Mundo, na qual teria sido o primeiro europeu a encontrar os astecas, no México, mas morreu endividado, em 1514. Da vida de Lepe sabe-se menos ainda. Morreu em Portugal em 1515 e não se tem notícia nem de onde foi enterrado.
Dúvidas eternas
Dificilmente saberemos se outras pessoas não teriam chegado ao litoral brasileiro antes desses homens. A história dessas viagens foi preservada em poucos documentos. Quantas outras, de menor importância ou maior segredo, não teriam sido feitas?

Quando Martim Afonso de Souza veio para o sul do Brasil, em 1530, encontrou por aqui certo Bacharel de Cananeia, degredado europeu apresentado em diversas crônicas do século 16. Os registros da viagem de Afonso dizem que o Bacharel estava no Brasil havia 30 anos. A maioria dos historiadores defende que ele fora deixado aqui por Gonçalo Coelho, em 1502, mas alguns dizem que isso teria acontecido em 1499, numa suposta expedição de Bartolomeu Dias ao Brasil - de qualquer forma, ele estava justamente onde passava o meridiano de Tordesilhas.

Não há evidências concretas de qualquer outra viagem no Atlântico Sul entre 1488 e 1498. Apesar da falta de provas, provavelmente houve, sim, outras expedições à região. Vasco da Gama percorreu no caminho para a Índia a mesma rota que os velejadores fazem até hoje entre a Europa e o sul da África. Gama teria acertado o melhor caminho, de primeira, por pura sorte? Ou teria feito isso depois de um longo e meticuloso período de viagens de exploração? Domingues arremata: "Essa é uma pergunta que se faz há mais de 100 anos".
Saiba mais
A Construção do Brasil, Jorge Couto, Forense, 2011
FONTE: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/nao-foi-cabral.phtml#.WmtxcVSnHIU