Ao ousar fazer literatura, mulheres contestaram seu lugar social e construíram linguagem própria
Norma Telles
Publicado na edição 113 da Revista História da Biblioteca Nacional - Fevereiro 2015.
Muito antes de existirem grupos feministas organizados – desde a Idade Média – mulheres de letras, em diferentes lugares do Ocidente, procuraram desvendar sua própria história refletindo sobre gênero, tradição, inovação. Sozinhas ou dialogando com contemporâneas e antecessoras, buscavam validação, conhecer seu valor numa comunidade literária. Ao mesmo tempo, havia sempre um lado sombrio nessa tradição feminina que foi se formando. Ela era perturbadora e não triunfalista.
Desde o início da modernidade, e especialmente nos séculos XVIII e XIX, um maior número de autoras trabalhou para destituir a língua dos mecanismos de poder que as constrangiam e para opor-se aos estereótipos culturais. Foram tentativas de operar nas margens ou nas brechas da linguagem que impunha silêncio às mulheres – delas se esperava que fossem maternais e delicadas, que abrissem mão de uma história própria para se dedicarem inteiramente aos seus.
Os anjos do lar se tornavam potência do mal quando não seguiam as regras ou quando pretendiam usurpar atividades e maneiras de viver que não lhes eram atribuídas. Ideias naturalizadas dos gêneros colocaram sempre as mulheres além ou aquém da cultura. Os dons artísticos eram definidos como naturalmente masculinos. Anjos ou demônios, a elas restava o papel de mediadoras, musas ou criaturas. Nunca criadoras.
Quando o discurso sobre a “natureza feminina” se firmava, em paralelo à ascensão da burguesia, muitas mulheres não se deixaram convencer e escreveram, tanto na Europa quanto nas Américas. A posição que ocupavam na sociedade – marcada pela imposição dos padrões de gênero, pela interdição a certas áreas da linguagem e à educação formal superior, além da falta de mobilidade e de independência econômica – lhes permitiu esboçar paisagens diferenciadas.
No século XVIII, Ann Radcliffe tornou-se a autora mais popular e bem paga da Inglaterra. Considerada a inventora da literatura gótica, cria em seus romances protagonistas jovens que são, ao mesmo tempo, vítimas perseguidas por algum homem perverso disfarçado em pele de cordeiro, e também heroínas corajosas. Para Radcliffe, a trama era um pretexto para enviar suas personagens a viagens excitantes sem ofender os padrões vigentes. Capturadas pelos vilões, elas agem, porque são forçadas, mostram capacidade de decisão, de superar a ingenuidade e testar sua própria força física. Em seus romances – como Os Mistérios de Udolfo (1794) e O Italiano (1797) – as mulheres participam de aventuras e perigos que antes as ficções só reservavam aos homens.
No mesmo século, também na Inglaterra, Mary Astell e Lady Mary Montagu foram críticas cáusticas do poder masculino. Escreveram longamente sobre o funcionamento do patriarcado, mesmo sem usar este termo. Astell definiu as mulheres como categoria independente em relação aos homens. Para ela, como para inúmeras mulheres depois, o problema era de acesso à educação: os homens eram educados e negavam educação às mulheres.
Na França, no século XVII, surgiram diversos salões onde mulheres da alta burguesia, ricas e independentes, criticavam a situação feminina na sociedade, defendiam igualdade entre os sexos e o direito ao amor e ao prazer. Ficaram conhecidas como Preciosas e entre elas se destacaram a Marquesa de Rambouillet e Jean de la Forge, que escreveu O círculo das mulheres sábias (1663). Outro grupo publicou, em 1661, O grande dicionário das preciosas de Somaise. Naqueles salões desenvolveu-se uma forma de pensamento próxima ao que denominamos hoje feminismo.
Olympe de Gauges, ao contrário delas, era uma mulher do povo que se fez historiadora, jornalista e revolucionária. Escreveu para o teatro, e também artigos e panfletos que espalhava pela cidade de Paris. Defendia o divórcio e a união livre, fundou clubes de mulheres onde se discutia política e ficou famosa por escrever a Declaração dos Direitos das Mulheres e das Cidadãs – considerando que a Revolução não dera espaço para as mulheres e exigindo direitos iguais. Por ter apoiado o rei e depois os girondinos, pelo que escreveu, foi presa e condenada por Robespierre. Morreu na guilhotina.
Quando chegou à França revolucionária, a inglesa Mary Wollstonescraft, admiradora de Ann Radcliffe e partidária de ideias libertárias, já era uma filósofa e jornalista famosa. Inteligente, sedenta por conhecimento, boa observadora, reformulou várias ideias de sua época, principalmente em relação às mulheres. A conexão que faz entre o pessoal e o político torna seu trabalho instigante até os dias de hoje. Seu livro mais conhecido é Reivindicação dos direitos da mulher (1790).
A obra foi publicada no Brasil por Nísia Floresta, que fez dela uma tradução livre, adequando-a às necessidades locais. Direito das mulheres e injustiça dos homens foi o título escolhido para a adaptação, que foi lançada em 1832 e tornou-se um marco no desenvolvimento de ideias feministas em território brasileiro e fez de Floresta uma pioneira em vários campos, como na escrita e na educação.
Julia Lopes de Almeida dedica-se às diferenças de formação e aos padrões de gênero em Elles e Ellas (1910). Uma das personagens pensa ser uma boneca de carne e osso, só isso, pois sua dependência é motivo de felicidade celebrada por todos ao seu redor, e sua maior pena é pensar essas coisas sem saber articulá-las. Outra personagem comenta que as moças são criadas para mártires ou hipócritas, por isso desenvolvem sentido de inferioridade. Uma terceira diz que os filhos são educados para a liberdade, e as filhas são criadas para os rapazes. A autora constata que os homens tecem a sociedade com malhas de dois tamanhos, grandes para eles e seus pecadilhos, para que saiam e entrem facilmente, e miúdas para os delas.
A conquista do território da escrita foi longa e difícil, assim como não foi fácil romper as paredes da casa-prisão ou da prisão-textual que confinavam as mulheres submetidas a regras rígidas. Para se tornarem escritoras, precisaram superar a defasagem de educação, rever a própria socialização, encontrar um caminho para a linguagem e a atuação no mundo.
A poeta e jornalista Narcisa Amália escreve em O Garatuja, em 1889: “A pena obedece ao cérebro, mas o cérebro submete-se antes ao poderoso influxo do coração; como há de a mulher revelar-se artista se os preconceitos sociais exigem que o seu coração cedo perca a probidade, habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencionais?”. E em outro artigo do mesmo ano: “É sobre a pressão esmagadora da desventura que a poetisa ou a pensadora anima-se a passar da Concepção à Execução – cerrados os olhos para a multidão circundante (...) a fim de evitar a hesitação ou o desfalecimento”.
No poema Cristais Partidos, Gilka Machado – uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino (1910) – define que ser mulher é “ficar presa aos grilhões dos preceitos sociais”. Ela expôs com ousadia os anseios das moças, escrevendo poesia erótica na qual buscava delinear não só igualdade política, como a liberdade de desejo: “Teus lábios inquietos/ pelo meu corpo/ acendiam astros.../ e no corpo da mata/ os pirilampos/ de quando em quando,/ insinuavam/ fosforescentes carícias...” (1928). De maneira similar, Maria Benedita Bormann discute, em seus romances, a vida de mulheres que “desvivem-se em carinho e afeto”, e sugere, em Lésbia (1890), que uma alternativa passa pela escrita e pela independência financeira e amorosa.
Ações e artes de mulheres fizeram desmoronar ideias arraigadas desde o início da modernidade sobre os papéis de gênero no Ocidente. Desmancharam verdades tidas como naturais e imutáveis, ampliando o que consideramos relevante em nossa herança cultural.
A literatura escrita por mulheres se mostrou um palimpsesto, porque o desenho de superfície esconde e obscurece significados diversos, profundos, menos acessíveis, menos aceitos socialmente. É uma arte que tanto expressa quanto disfarça as mil influências que informam as vidas e as dissidências que giram em torno das autoras.
Norma Telles é autora de Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX (Intermeios, 2012).
Saiba Mais:
GARCIA, Carla C. Breve História do Feminismo. São Paulo: Claridade, 2011.
GILBERT, Sandra M. Rereading women: thirty years of exploring our literary traditions. New York: W.W. Norton, 2011.
MUZART, Zahidé (org.). Escritoras brasileira do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.
SHOWALTER, Elaine (ed.). The Feminist Criticism. New York: Pantheon Books, 1985.