quinta-feira, 22 de março de 2012

Coronelismo e a política de favores no Brasil



A economia do país era basicamente agrícola. Os “coronéis” empregavam trabalhadores em suas fazendas e lhes pagavam salários miseráveis.
Criou-se um sistema em que os coronéis “ajudavam” os trabalhadores ao mesmo tempo em que exploravam sua força de trabalho. Emprestar dinheiro, oferecer auxílio na educação dos filhos e socorro em caso de doença, por exemplo, eram maneiras de controlar os trabalhadores e criar uma rede de dependência pessoal mantida pelo coronel local.
Os principais empregos e cargos públicos dependiam da influência dos coronéis. Por isso, pessoas de diferentes origens e profissões tentavam se aproximar dos coronéis em busca de favores, o que caracteriza o clientelismo.
Em troca desses favores, os coronéis exigiam que votassem nos candidatos de seu partido. Quem se negasse a votar perdia seus favores e sofriam com a violência dos jagunços que trabalhavam para os coronéis.
Os jagunços deviam controlar o voto dos eleitores, que naquela época era aberto. Essa prática de votar sob pressão ficou conhecida como voto de cabresto. Além disso era comum haver fraudes nas eleições visando garantir a vitória dos candidatos ligados aos coronéis.

Oligarquias
O coronel mais importante em cada município ou região aliava-se a fazendeiros de outros municípios ou regiões para eleger o governador do estado, mantendo o poder político nas mãos do mesmo grupo.
Desta forma, os grandes fazendeiros montavam redes de transmissão de poder. Essas redes foram chamadas de oligarquias.
No nordeste os coronéis tinham poder até para criar seus próprios exércitos.
Política do café com leite. O primeiro presidente civil da República foi Prudente de Morais (1894 – 1898), sucedido pelo fazendeiro paulista Campos Sales, que ficou até 1913.
Alianças e fraudes eram os métodos utilizados pelas oligarquias. Em São Paulo e Minas Gerais, eles se organizaram em dois partidos: o PRP (Partido Republicano Paulista), ligado as fazendas de café e o RPM (Partido Republicano Mineiro), ligados aos produtores de leite. Essa aliança dominou boa parte da vida política do país e por isso ganhou o nome de república do café com leite.
  
Café e Poder
O café liderou os produtos brasileiros de exportação durante toda a Primeira República, representando 50% do total de vendas ao exterior.
No final do século XX o consumo de café amplio-se em todo o Ocidente, o que levou a cafeicultura a se expandir para atender o mercado. Essa expansão possibilitou o desenvolvimento de São Paulo e Santos e a chegada dos trabalhadores provenientes de outros países, os imigrantes.
O Brasil foi um dos maiores destinos dos imigrantes europeus e asiáticos, seduzidos pela propaganda do governo brasileiro. Mais de 3,5 milhões de imigrantes de diferentes países vieram para o Brasil, sendo São Paulo a cidade que mais recebeu imigrantes, cerca de 57% do total.
A imigração por longo tempo desencadeou mudanças, principalmente nas regiões Sudeste e Sul do país, transformando a alimentação, moradias e rotina de trabalho.
Muitos fazendeiros começaram a construir suas residências nas cidades, para ficar mais perto de onde o café era comercializado. Esses novos moradores se juntaram ao grande numero de trabalhadores.
Para atender a tanta gente, ampliaram-se os transportes urbanos, a pavimentação das ruas, a iluminação e expandir as estradas de ferro.
Entusiasmados com os lucros, os cafeicultores aumentaram suas plantações, a ponto de o total de café produzido se maior que o consumido. Isso levou a uma crise, pois os preços caíram e havia estoques imensos que não eram vendidos.

Convênio de Taubaté
Para tentar resolver a crise os fazendeiros se reuniram e fizeram um acordo que ficou conhecido como Convênio de Taubaté. Nesse acordo os fazendeiros propuseram que todo o café excedente fosse comprado pelo governo federal e estocado para ser vendido posteriormente, quando o preço se normalizassem.

O presidente Campos Sales não atendeu aos cafeicultores - mesmo sendo um deles - e não autorizou o empréstimo no exterior para a compra dos estoques de café. Já os presidentes eleitos após 1919 aceitaram integralmente.

domingo, 11 de março de 2012

Universidades e escola básica: o coronelismo acadêmico

A universidade transforma o diploma numa patente (“Você sabe com quem está falando?”), mas submete o professor da escola básica a avaliações humilhantes feitas por crianças de 11 anos.
 Nessa escola idealizada pelas correntes pedagógicas hegemônicas não há espaço para a responsabilidade. O aluno é um “sujeito de direitos”, isento de qualquer dever.

A greve dos professores da rede pública de ensino do Estado de Goiás fez aflorar uma tese recorrente no imaginário social – a de que os políticos não investem em educação para manter o povo na ignorância e, dessa forma, poder manipulá-lo com mais facilidade. Isso pode ter sido verdade no antigo sertão de Paulo Honório, o personagem-narrador do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, que não gostava de ver a própria mulher, a professora Madalena, ensinando os cabras de seu latifúndio conquistado mediante esbulho. Hoje, a realidade é bem outra: quem deseja manter o povo na ignorância não são os políticos – são os mestres e doutores universitários. Eles criaram na pós-graduação das universidades uma ciência esotérica e inútil, mas paradoxalmente militante, cujo principal propósito não é o ensino, mas a manipulação. E as primeiras vítimas dessa educação malsã são os professores da escola básica – tratados com evidente menosprezo nas dissertações e teses da academia.

Encastelados especialmente nas universidades públicas, os coronéis do conhecimento (exibindo suas vistosas patentes de “doutor” na Plataforma Lattes) não costumam aceitar críticas. Sua reação a elas varia da fingida indiferença à descabelada indignação. E se a crítica parte de quem não é acadêmico, a atitude dos coronéis de beca tende a ser a mesma dos velhos coronéis de bacamarte: “Você sabe com quem está falando?” Foi essa a reação ao meu artigo “O fracasso do mérito”, publicado na edição passada do Jornal Opção, tratando da greve dos professores da rede estadual de ensino. Imaginando que sou leigo no assunto, alguns acadêmicos reagiram de modo risível nas redes sociais e no próprio espaço de comentários do jornal. Um deles, mestre em educação pela UFG e doutorando em educação pela PUC de Goiás, depois de indagar a um oponente que defendia o meu artigo se o mesmo tinha mestrado ou doutorado, chegou a afirmar textualmente: “Conversar sobre meritocracia com quem não tem nem currículo na Plataforma Lattes e são apenas graduados é difícil demais. Esta é a verdade”.

Como não chega a ser um coronel acadêmico de alta patente, com um exército de orientandos na pós-graduação, o autor dessa afirmação merece ser preservado de si mesmo e não vou revelar o seu nome. Mas o menosprezo que ele manifesta em relação a quem não tem título de doutor ou mestre é um espelho fiel da velha cultura do bacharelismo, que, ao contrário do que se imagina, ficou ainda mais grave com a expansão dos cursos de pós-graduação nas duas últimas décadas. Antes, a cultura dos bacharéis era um vírus que atacava apenas médicos, advogados e engenheiros; hoje, ela se disseminou por todas as áreas do conhecimento, a ponto de alunos de graduação e especialização lato sensu encherem a boca para falar do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e do título que ele possibilita, uma espécie de patente de cabo na hierarquia da caserna acadêmica. É o diploma substituindo o mérito em vez de expressá-lo.

Criança avalia professor
 
Paradoxalmente, essa universidade que se protege atrás de uma hierárquica barreira de títulos é a mesma universidade que despe o professor da escola básica de qualquer autoridade institucional e o obriga a se apresentar como um igual – ou até mesmo um inferior – diante de seus alunos. Hoje, nas escolas públicas, a inversão de valores é tanta que já não é o professor quem avalia o aluno, mas o aluno quem avalia o professor. É o que se constata no “Manual de Orientação para a Avaliação de Estágio Probatório dos Docentes da Secretaria Estadual de Educação”, um documento de 57 páginas, elaborado por 19 gestores com formação acadêmica e publicado em 2008. Como se sabe, de acordo com o artigo 41 da Constituição, todo servidor concursado só adquire estabilidade após um estágio probatório de três anos, em que passa por avaliações periódicas e, se não for aprovado, perde o cargo. Ou seja, o estágio probatório é algo extremamente sério, pois decide a própria vida profissional do servidor.

Agora, pasmem: na Secretaria Estadual de Educação, alunos de apenas 11 anos de idade, representando turmas de 5ª série (6º ano) do ensino fundamental, participam das comissões que avaliam o professor concursado em estágio probatório. Uma criança dessa idade é chamada a decidir o próprio destino profissional de um pai ou mãe de família que passou num concurso público, tem até pós-graduação e, sobretudo, é uma pessoa adulta, que – em nenhuma circunstância – pode ser avaliada por uma simples criança. Para se ter uma ideia da avacalhação a que o professor da escola básica é submetido – com a cumplicidade dos intelectuais universitários – a ficha de avaliação do professor que a criança de 5ª série preenche (Ficha II) é idêntica à que é preenchida pelo professor-coordenador da escola (Ficha I), pelo próprio professor que está sendo avaliado (Ficha III) e até pelo presidente da comissão de avaliação (Ficha IV).

O representante dos alunos – que, repito, pode ter apenas 11 anos de idade – atribui uma nota de 0 a 10 ao professor em cinco requisitos: idoneidade moral; assiduidade e pontualidade; disciplina; eficiência e aptidão. E a criança, a exemplo dos adultos, tem de justificar cada nota dada em um por um dos requisitos que estão sendo avaliados. Em relação à “eficiência”, o manual explica para todos os avaliadores, inclusive a criança, que se trata da “ação competente e criativa do professor para atingir com eficácia os objetivos propostos pela Unidade Escolar e pela Secretaria, na busca de resultados com qualidade”. Ora, como é que um aluno de 11 anos poderá saber se o professor que lhe ministra as aulas atingiu com eficácia as diretrizes propostas pela Secretaria de Educação? E com que critério uma escola aceita que uma criança seja eleita para falar em nome dos colegas num assunto de tamanha gravidade, instituindo uma espécie de meritocracia do acaso? Só mesmo uma pedagogia ideologicamente embriagada – que não tem o menor respeito por si mesma – pode obrigar um professor a se ajoelhar dessa forma aos pés da criança que tem por aluno. Os médicos concursados da rede pública de saúde também se submetem a estágio probatório; mas é possível imaginar um pediatra sendo avaliado profissionalmente por crianças de 11 anos?

Reizinho indisciplinado

 
Por que o Sintego (Sindicato dos Trabalhadores da Educação no Estado de Goiás) nunca denunciou essa forma de avaliação do estágio probatório da rede estadual de ensino? Não resta dúvida que esse tipo de tratamento dado ao professor – que é regra, não exceção – chega a ser mais deletério em sua carreira profissional do que os baixos salários. Muitos profissionais de comunicação, por exemplo, ganham igual ou menos do que o professor e não têm estabilidade no emprego, mas submetem-se a precárias condições de trabalho apenas pelo relativo prestígio que a profissão oferece. Já o professor, na maioria das vezes em que faz greve, pensa menos no aumento de salário do que no tempo em que ficará livre dos alunos e seus celulares ubíquos. Creio que muitos nem se dão conta disso quando aderem ao movimento grevista, mas só o descanso que a greve oferece pode explicar a insistência com que paralisam as atividades quase todo ano, mesmo sabendo que, ao cabo do movimento, as conquistas são ínfimas e muitas vezes se reduzem a não ter os pontos cortados. Se o professor se sentisse realizado em seu trabalho, com alunos e pais que o valorizassem, é provável que, mesmo ganhando pouco, relutaria em fazer greve.

Todavia, como é que pais e alunos vão valorizar o professor da escola básica se as próprias universidades não o respeitam e insistem em tratá-lo como um despreparado, que precisa não apenas ser capacitado por elas, mas até mesmo aprender com os próprios alunos? Infelizmente, o Sintego é parceiro das faculdades de pedagogia e demais cursos de licenciatura, com quem professa o pensamento dos derivados modernos e pós-modernos do marxismo, como Antonio Gramsci (1891-1937), Lev Vygotsky (1896-1934), Paulo Freire (1921-1997), Michel Foucault (1926-1984), Pierre Bourdieu (1930-2002) e Emilia Ferreiro (1936), entre vários outros. Todos os mestres e doutores contemporâneos que se filiam a essas ou outras correntes das humanidades têm em comum a crença de que a função da escola é “construir sujeitos” e “transformar a sociedade”. Daí a unção do construtivismo de Jean Piaget (1896-1980), que se tornou uma espécie de religião pedagógica da esquerda, assim como o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882) é a religião biológica dessa gente.

Nessa escola idealizada pelas correntes pedagógicas hegemônicas não há espaço para a responsabilidade. O aluno é um “sujeito de direitos”, isento de qualquer dever. Logo, todo e qualquer fracasso desse reizinho indisciplinado é jogado sobre os ombros do professor. É o que se vê, por exemplo, na Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, do Conselho Nacional de Educação, que define as “Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica”. Composta de 60 artigos e uma infinidade de parágrafos, alíneas e incisos, essa resolução – sintomaticamente publicada na data de aniversário do famigerado Estatuto da Criança e do Adolescente – é um documento que oscila entre a insanidade e a arrogância, exigindo do professor o impossível e do aluno, nada. Seus autores – entre os quais estão algumas sumidades acadêmicas do país, como o professor Mozart Neves Ramos, um dos pais do movimento “Todos pela Educação” – deviam ser condenados a aplicá-lo pessoalmente numa escola de periferia brasileira, ganhando o que ganham os professores da rede básica.

As “Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica” inviabilizam qualquer proposta de uma escola meritocrática, pois não se pode cobrar mérito apenas do professor, deixando o aluno à vontade para fazer o que quer, como ocorre hoje. Mesmo a proposta de premiar os bons alunos, como prevê o “Pacto pela Educação” do governo Marconi Perillo, tende a não funcionar. Se o aluno indisciplinado não pode ser suspenso muito menos expulso da escola, a sala de aula se torna insalubre para o aprendizado e não há caderneta de poupança para o aluno que dê jeito nisso, como acredita o secretário estadual de Educação, Thiago Peixoto.

Sem contar que, pelos critérios amorais – e até imorais – da pedagogia moderna, nada impede que um aluno indisciplinado, violento ou drogado, apenas por um rasgo de bom comportamento, venha a ser premiado com uma poupança escolar, em detrimento de um aluno bem comportado. A cultura da imoralidade – cultivada na academia – está arraigada na educação e não será o esqueminha de aluno de administração da Bain & Company, importado pelo secretário, que irá mudar essa realidade.

Enganando os pobres

 
Se o professor tiver de cumprir as Diretrizes Curriculares Nacionais da Escola Básica, ele não poderá conjugar nenhum outro verbo na vida a não ser “trabalhar”. E mesmo sem comer, dormir ou amar, cada dia do professor precisaria ser como um dia do planeta Vênus (243 dias terrestres) para que ele pudesse dar conta de todas as responsabilidades que lhe são impostas. Exemplo disso é o artigo 47 das Diretrizes, que reza: “A avaliação da aprendizagem baseia-se na concepção de educação que norteia a relação professor-estudante-conhecimento-vida em movimento, devendo ser um ato reflexo de reconstrução da prática pedagógica avaliativa, premissa básica e fundamental para se questionar o educar, transformando a mudança em ato, acima de tudo, político”. Reparem no caráter imoral dessa resolução: ela deixa claro que o objetivo da escola não é ensinar o aluno a ler, escrever e contar, mas usá-lo – “acima de tudo” – como instrumento político, a partir de um professor transformado em militante.

Os acadêmicos que escreveram essa resolução – entre eles, a goiana Clelia Brandão, ex-reitora da PUC de Goiás – deveriam ter a coragem de sustentar na cara do pedreiro e da faxineira que a função da escola não é dar ao filho desses operários a formação que seus pais não tiveram e, sim, usá-lo como massa de manobra da utopia de transformação do mundo. E quando o pedreiro e a lavadeira perguntassem a esses doutores universitários se seus próprios filhos também recebem uma educação “acima de tudo, política”, como a que é oferecida na escola pública, os acadêmicos deveriam ter a honradez de confessar a verdade: “Não, seu Zé, não, dona Maria, nossos filhos precisam passar nos concorridos concursos públicos e nos vestibulares de medicina e direito das universidades públicas, onde vão estudar de graça, por isso nós os matriculamos em boas escolas privadas, onde aprendem muita matemática, português, biologia e química”.

Mas esses coronéis do conhecimento só têm respeito pela própria patente de doutor, como fica claro na linguagem utopicamente desabusada das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. O seu artigo 55 estabelece que a gestão democrática da escola “constitui-se em instrumento de horizontalização das relações, de vivência e convivência colegiada, superando o autoritarismo no planejamento e na concepção e organização curricular, educando para a conquista da cidadania plena e fortalecendo a ação conjunta que busca criar e recriar o trabalho da e na escola”. Como se vê, o Conselho Nacional de Educação, influenciado pelas universidades, impõe à escola básica a “horizontalização das relações”, o que significa igualar completamente professor e aluno, retirando toda autoridade do mestre; no entanto, não existe nada mais vertical do que a hierarquia da pós-graduação nas universidades. Um aluno só chega ao doutorado de uma universidade pública se contar com o apadrinhamento dos coronéis de beca, pois as linhas de pesquisa nesse nível da pós-graduação são geridas de modo subjetivo, dependendo de cartas de apresentação de um doutor para outro.

Inventar a escola
 
Um exemplo das exigências sobre-humanas que são feitas ao professor está no parágrafo 3º do artigo 13 das Diretrizes Curriculares Nacionais da Escola Básica. Diz o texto que “a organização do percurso formativo, aberto e contextualizado, deve ser construída em função das peculiaridades do meio e das características, interesses e necessidades dos estudantes, incluindo não só os componentes curriculares centrais obrigatórios, previstos na legislação e nas normas educacionais, mas outros, também, de modo flexível e variável, conforme cada projeto escolar”, e assegurando, entre outras questões, “a ampliação e diversificação dos tempos e espaços curriculares que pressuponham profissionais da educação dispostos a inventar e construir a escola de qualidade social, com responsabilidade compartilhada com as demais autoridades que respondem pela gestão dos órgãos do poder público, na busca de parcerias possíveis e necessárias, até porque educar é responsabilidade da família, do Estado e da sociedade”. Que norma prolixa e doentia é essa que manda o professor “inventar” a escola de qualidade social? Alô, Sintego e Faculdades de Pedagogia, o Conselho Federal de Medicina ficaria calado diante de uma norma do Ministério da Saúde que mandasse o médico “inventar” o hospital de qualidade?

Quando digo que essas diretrizes oscilam entre a arrogância e a insanidade, estou usando de eufemismo, para evitar um julgamento moral. Pois, no fundo não são loucas, são charlatãs. Ou é possível levar a sério uma resolução que fala em “escolha da abordagem didático-pedagógica disciplinar, pluridisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar pela escola, que oriente o projeto político-pedagógico e resulte de pacto estabelecido entre os profissionais da escola, conselhos escolares e comunidade, subsidiando a organização da matriz curricular, a definição de eixos temáticos e a constituição de redes de aprendizagem”? Eu queria ver um dos autores dessa resolução, numa sala de aula, separando concretamente, em sua prática didático-pedagógica, o que é “pluridisciplinar” do que é “interdisciplinar” e do que é “transdisciplinar”. Eis o coronelismo acadêmico exibindo sua patente em forma de linguagem cuja suposta complexidade é apenas um disfarce para o vazio do cérebro.

A resolução diz que a “escolha da abordagem didático-pedagógica” deve orientar o “projeto político-pedagógico” e, ao mesmo tempo, deve resultar de “pacto estabelecido entre os profissionais da escola, conselhos escolares e comunidade”, que, por sua vez, vai subsidiar “a organização da matriz curricular, a definição de eixos temáticos e a constituição de redes de aprendizagem”. Ora, um pacto entre os profissionais da escola e a comunidade já pressupõe a existência de um “projeto político-pedagógico”; logo, a “escolha da abordagem didático-pedagógica” vai derivar desse projeto e não orientá-lo. Inclusive porque a abordagem didática é um insumo da educação que pode variar de uma aula para outra, enquanto um projeto político-pedagógico é um conjunto de diretrizes gerais que norteiam todo o ensino num dado estabelecimento educacional.

Como se vê, os autores das Diretrizes Curriculares Nacionais da Escola Básica, encastelados no Conselho Nacional da Educação, não sabem o que estão escrevendo. Juntam palavras apenas pelo seu valor ideológico, como “construção”, “sujeito”, “cidadania”, “pluralidade”, “diversidade” e outros abracadabras do gênero.

Entretanto, mesmo diante de todas essas exigências que o Conselho Nacional de Educação faz ao professor da escola básica, o pedagogo José Carlos Libâneo – ao criticar o “Pacto pela Educação” do governo estadual – teve a coragem de indagar: “Onde estão as professoras que dominam os conteúdos, que sabem pensar, raciocinar, argumentar e têm uma visão crítica das coisas?” Sem dúvida, o próprio Libâneo – e não Thiago Peixoto – é quem, olhando-se no espelho, deveria dar resposta a essa pergunta.

Afinal, quem tem de saber onde estão essas professoras são as Faculdades de Pedagogia, que não fazem outra coisa senão preparar seus graduandos para um mundo que não existe. Os cursos de formação de professores das universidades, na maioria dos casos, fazem é deformar os professores, começando por incutir-lhes uma falsa ideia de liberdade, que os leva a romper com o mundo real para perder-se em utopias. Isso porque a pedagogia construtivista – que manda o professor respeitar a realidade do aluno – jamais respeita a realidade do professor. É, sobretudo, contra essa arrogância acadêmica que o professor da escola básica deve lutar. Ao contrário do que pensam os professores em greve, o governante de plantão é um mal passageiro – o coronelismo acadêmico é que é um mal permanente.

Publicado no Jornal Opção.
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.

sábado, 3 de março de 2012

HISTÓRIAS MITOLÓGICAS

O NASCIMENTO DE VÊNUS


A véspera do nascimento de Vênus fora um dia violento. O firmamento, tingindo-se subitamente de um vermelho vítreo, enchera de espanto toda a Criação.

Saturno, munido de sua foice, enfrentara o próprio pai, o Céu, num embate cruel pelo poder do Universo. Com um golpe certeiro, o jovem deus arrancara fora a genitália do pai, tornando-se o novo soberano do mundo. Um urro colossal varrera os céus, como o estrondo tremendo de um infinito trovão, quando o Céu fora atingido.

O fecundo órgão do deus deposto, caindo do alto, mergulhara nas águas profundas, próximo à ilha de Chipre. Assim, o Céu, depois de haver fecundado incessantemente a Terra — dando origem à estirpe dos deuses olímpicos -, fecundava agora, ainda que de maneira excêntrica e inesperada, o próprio Mar.

Durante toda a noite o mar revolveu-se violentamente. A espuma do mar, unida ao sangue do deus caído, subia ao alto em grandes ondas, como se lançasse ao vento os seus leves e espumosos véus. Mas quando a Noite recolheu finalmente o seu grande manto estrelado, dando lugar à Aurora, que já tingia o firmamento com seus dedos cor-de-rosa, percebeu-se que as águas daquele mar pareciam agora outras, completamente diferentes.

O borbulhar imenso das ondas anunciava que algo estava prestes a surgir.

Das margens da ilha de Chipre, algumas ninfas, reunidas, apontavam, temerosas, para um
trecho agitado do mar:

— O mar está prestes a parir algo! — disse uma delas.
— Será algum monstro pavoroso? — disse outra, temerosa.

Mas nem bem o sol lançara sobre a pátina azulada do mar os seus primeiros raios, viu-se a espuma, que parecia subir das profundezas, cessar de borbulhar. Um grande silêncio pairou sobre tudo.

— Sintam este perfume delicioso! — disse uma das ninfas.

As outras, erguendo-se nas pontas dos pés, aspiraram a brisa fresca e olorosa que vinha do alto-mar. Nunca as flores daquela ilha haviam produzido um aroma tão penetrante e, ao mesmo tempo, tão discreto; tão doce e, ao mesmo tempo, tão provocantemente acre; tão natural e, ao mesmo tempo, tão sofisticado.

De repente, do espelho sereno das águas — nunca, até então, o mar tivera aquela lisura perfeita de um grande lago adormecido — começou a elevar-se o corpo de alguém.

— Vejam, é a cabeça de uma mulher! — gritou uma das ninfas.

Sim, era uma bela cabeça — a mais bela cabeça feminina que a natureza pudera criar desde que o mundo abandonara a noite trevosa do Caos. Um rosto perfeito: os traços eram arredondados onde a beleza exigia que se arredondassem, aquilinos onde a audácia pedia que se afilassem e simétricos onde a harmonia exigia que se emparelhassem.

O restante do corpo foi surgindo aos poucos: os ombros lisos e simétricos, os seios perfeitos e idênticos — tão iguais que nem o mais consumado artista saberia dizer qual era o modelo e qual a sua réplica perfeita. Sua cintura, com duas curvas perfeitas e fechadas, parecia talhada para realçar o umbigo perfeito, o qual acomodava delicadamente, como um encantador pingente, uma minúscula e faiscante pérola. E, logo abaixo, um véu triangular — loiro e aveludado véu -, tecido com os mais delicados e dourados fios, agitava-se delicadamente, esbatido pela brisa da manhã. Nenhum humano podia saber ainda o que ele ocultava — seu segredo mais cobiçado, que somente a poucos seria revelado.

Algumas aves marinhas surgiram, arrastando uma grande concha, a qual depositaram ao lado da deusa — sim, era uma deusa -, para que ela, como em um trono, se assentasse. Um marulhar de peixes saltitantes a cercava, enquanto golfinhos puxavam seu elegante carro aquático até as areias da praia cipriota.

Nem bem a deusa colocara os pés na ilha, e toda ela verdejou e coloriu-se como nunca antes havia sido. Por onde ela passava, brotavam do próprio solo maços aromáticos de flores multicores, os pássaros todos entoavam um concerto de vozes perfeitamente harmoniosas e os animais quedavam-se sobre a relva com as cabeças pendidas, para receber o afago daquela mão alva e sedosa.

—  Quem é você, mulher mais que perfeita? — perguntou-lhe, finalmente, a ninfa que primeiro recuperara o dom da fala.

— Sou aquela nascida da espuma do mar e do sêmen divino — respondeu a deusa, com uma voz cristalina e docemente áspera, envolta num hálito que superava em delícia ao de todas as flores que seus pés haviam feito brotar.

No mesmo dia, a extraordinária notícia do nascimento de criatura tão bela chegou ao Olimpo, e os deuses ordenaram que as Horas e as Graças a fossem recepcionar. Ainda mais enfeitada pelas mãos destas caprichosas divindades, apresentou-se a nova deusa diante de seus pares no grandioso salão do Olimpo, sendo imediatamente acolhida e festejada pelos deuses.

Mas quando todos ainda se perguntavam quem seria, afinal, aquela criatura encantadora, um descuido — seria, mesmo? — pôs fim a todas as indagações. Pois o véu que a envolvia, descendo-lhe até os pés, revelara o que nenhum dos embelezamentos artificiais pudera antes realçar: a sua infinita beleza original.

— E Vênus, sim, a mais bela das deusas! — disse o coro unânime das vozes.

Tirado do livro "As 100 melhores histórias da Mitologia" - A. S. Franchini / Carmen Seganfredo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Vaticano libera ao público alguns dos mais valiosos documentos secretos

Pela primeira vez na história, Santa Sé divulga arquivos sigilosos à sociedade

crédito: Vatican\'s L\'Osservatore Romano
 
A cúpula da Santa Sé

O processo de Galileu Galilei, a bula de excomunhão de Martinho Lutero, passando pela "confissão" dos Templários: pela primeira vez o Vaticano revela ao público alguns de seus inúmeros segredos, numa exposição excepcional, aberta nesta quarta-feira (29) nos museus do Capitólio, em Roma. No total, mais de 100 documentos originais foram selecionados, por ocasião dos 400 anos de criação desses arquivos secretos, pelo papa Paulo V.

Intitulada "Lux in arcana" [Luz sobre os segredos, em latim], a exposição permite ao visitante descobrir o pedido de anulação do casamento de Henrique VIII e Catarina de Aragão, e o Dictatus Papae de Gregório VII, um manuscrito do século XI afirmando a supremacia dos papas sobre todos os outros poderes na Terra. Há também um pergaminho de 60 metros, remontando a 1308 e contendo a confissão dos templários diante de três cardeais enviados por Clemente V ao castelo de Chinon (centro da França).

"É a primeira vez na história e, talvez, também a última, que esses documentos deixam o interior do Vaticano", afirmam os organizadores. Sinal da importância do evento, o número dois do Vaticano, o cardeal Tarcisio Bertone, abriu a exposição ao lado do "ministro" da Cultura do Vaticano, Gianfranco Ravasi, do prefeito de Roma, Gianni Alemanno, e do ministro italiano da Cultura, Lorenzo Ornaghi. Ouvido pela imprensa sobre o que o teria mais impressionado nesta exposição, o cardeal Bertone respondeu: "Certamente, a verdade histórica".

Revela também documentos que defendem a atitude de Pio XII, criticado por ter mantido silêncio ante o Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial. Entre eles, está um relatório do núncio apostólico de Francesco Borgongini-Duca, que visitou sete campos de concentração na Itália, em 1941, e uma carta de agradecimentos de pessoas detidas nos campos, endereçada ao Papa.

Entre os outros documentos está a nomeação ao trono papal do eremita Pietro da Morrone (século XIII), que se tornou Celestino V e foi o único Papa da história a se demitir. Há também um documento do século XV no qual Alexandre VI divide o Novo Mundo entre a Espanha e Portugal, após a "descoberta" da América por Cristóvão Colombo. Ou ainda o decreto de Leão X que selou o cisma com os protestantes, conduzindo às guerras de religiões fratricidas na Europa.

Outros tesouros

As cartas de Michelangelo sobre a construção da Basílica de São Pedro ou um documento confeccionado em seda pela imperatriz da China Helena Wang, convertida ao cristianismo. Mais curiosa, a missiva do chefe da tribo indígena Ojibwa datando do século XIX a Leão XIII, a quem chama de "grande mestre das preces que cumpre as funções de Jesus".

Outra raridade, uma carta de Maria Antonieta presa depois da Revolução, na qual pode-se ler: "os sentimentos daqueles que partilham minha tristeza (...) são a única consolação que posso receber nestas tristes circunstâncias".

Lux in arcana ficará exposta até 09 de setembro. É possível saber mais informações em sua página da Internet. 

crédito: Tony Gentile/Reuters
Assinatura de Galileu Galilei é vista em um dos documentos expostos pelo Vaticano
Assinatura de Galileu Galilei é vista em um dos documentos expostos pelo Vaticano
 

Brasil colônia, riqueza e pobreza

Engenho no Nordeste. Foto: Reprodução Engenho no Nordeste
Foto: Reprodução

Voltaire Schilling
As primeiras histórias econômicas
O padre José Antônio Antonil SJ, inicialmente, deve ter exultado ao receber a autorização da censura portuguesa liberando-o para editar seu trabalhoso livro Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e Minas, saído do prelo em Lisboa, em 1711.
 
A obra de Antonil

Chegado a Salvador, na Bahia, desembarcado da Europa, ele que nascera em Luca, na Toscana, logo se empenhou em ir servir o grande padre Antônio Vieira, o maior sermonista da língua portuguesa em todos os tempos, homem da Corte e das lides diplomáticas. Mas, jesuíta de ampla formação, curioso das coisas da terra do Brasil, Antonil resolveu registrar detalhadamente suas impressões sobre a maior riqueza da colônia daquela época; a lavoura de açúcar.

Ainda que o ouro tivesse sido descoberto há pouco na capitania das Minas Gerais, o jesuíta concentrou sua atenção maior na produção feita no engenho. Sem, todavia, deixar de dar tratos ao plantar do tabaco, à criação de gado e ao comércio do couro. O intento dele era pragmático. Queria deixar algo de útil aos produtores rurais brasileiros. Pensou que suas anotações e observações - extraídas do dia-a-dia do engenho Sergipe do Conde de propriedade da Companhia de Jesus - poderiam servir como uma espécie de Manual da Lavoura para os donos de terra e um norte para o reinol que no Brasil viesse a se estabelecer.

Terminou escrevendo o melhor livro sobre a economia colonial que se conhece, não lhe ficando mal o título de pai ou precursor-mor da história econômica do Brasil, ainda que na sua soberba monografia sobre a história colonial brasileira, José Honório Rodrigues o tenha colocado apenas no tópico da 'Literatura Açucareira'(ver José Honório Rodrigues - História da História do Brasil: 1 parte Historiografia colonial, S; Paulo: Companhia Editora Nacional, pag. 371 e 393).

Talvez por isto mesmo, as autoridades da metrópole voltassem atrás. A licença de circulação do livro foi suspensa e os funcionários do rei tiveram ordem de recolher todos os exemplares que encontrassem pelas livrarias de Lisboa ou que tivessem expostos em alguma repartição.

 É possível que a razão maior da reviravolta, tenha sido o fato de Antonil, ingênuo, descrever os vários caminhos que poderiam ser usados para, partindo-se do litoral brasileiro, atingir-se às regiões da lavra do ouro, uma espécie de roteiro que podia cair em mãos adversas e assim proporcionar aos inimigos de Portugal boas informações para que lhe roubassem a riqueza finalmente encontrada. Calculam que sobraram apenas sete livros desta edição de Antonil.

Mas este incidente de bibliofobia é revelador de outra situação que explica a pobreza intelectual e cultural do Brasil colônia.
 
Vigiando a colônia

Dono de um território vastíssimo, imenso, com uma linha costeira de mais de sete mil e tantos quilômetros de extensão, litoral que devia ser guarnecido de tanto em tanto com poderosos fortes, para os portugueses, além da atenta vigilância, somente uma permanente 'operação silêncio' poderia manter os curiosos a distância.

Sempre com pouquíssima gente e escassez de funcionários, a Coroa não tinha como policiar seu colossal império que se desdobrava por outros continentes e oceanos. Os cuidados então eram redobrados. Não podiam circular informações sobre a nova possessão, pois a metrópole não desejava atrair colonos ou outros povoadores como os ingleses fizeram nas suas terras americanas, mas sim somente explorar suas riquezas.

A esta preocupação isolacionista juntou-se a da Igreja Católica impulsionada pelos medos da Contra-Reforma que a fazia ver heresia em qualquer canto, redobrando-se assim o policiamento.
Assim, nos principais ancoradouros do Brasil daquele tempo, fiscais atentos reviravam as embarcações para evitar a exportação de relatos comprometedores escritos por algum desavisado ou o desembarque de 'obras perigosas', particularmente as que tinham origem francesa, matriz da subversão iluminista, que corroia a autoridade do rei e os dogmas da Santa Madre Igreja.

Esta vigilância extrema terminou por fazer com que, por vezes, livros contrabandeados alcançassem São Paulo e o Rio de Janeiro trazidos por tropeiros do extremo sul, em rotas de mais de mil quilômetros, vindos da região do rio da Prata.

Isto - esta paranóia - por igual explica o motivo de jamais permitirem a abertura de universidade no Brasil, como a Coroa espanhola aceitou que se fizesse na cidade do México e em Lima, no Peru, ainda no século XVI.

Um centro de ensino superior, por mais mirrado e acanhado, implica abrir pontes para o mundo, em importar livros e acadêmicos de outras partes, em deixar circular as idéias e em abrir-se às inovações, em excitar o olho dos curiosos, em abrigar tratados, polígrafos e manuais. E, certamente, em ter um prensa.
Nada disto era do agrado do poder colonial. O pequeno reino Ibérico, ciumento do seu achado, não queria partilhá-lo com ninguém. Mantê-lo no silêncio e no atraso, quando não bronco e alheio às coisas do mundo, era uma questão estratégica de sobrevivência dos seus interesses.
 
 O 'Diálogo das Grandezas'

Destino similar ao livro de Antonil teve outro 'clássico' do Brasil Colonial, surgido um século antes da obra do jesuíta. Tratou-se do Diálogo das Grandezas do Brasil, de autor anônimo que apareceu em 1618, e que somente foi encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa pelo historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, no século XIX.

É o registro de um interessante e hipotético diálogo mantido por dois homens, um luso que há muito está na terra nordestina, provavelmente na capitania da Paraíba, chamado Brandônio, e um reinol recém desembarcado de nome Alviano. O primeiro, quase um brasileiro, procura expor as potencialidades da colônia, a excelência do clima e a abundancia de terras e, depois de descrever as capitanias uma a uma, elenca as promessas de riquezas que aguardam os destinos dos moradores frente ao português que, somente aos poucos vai sendo convencido do futuro dadivoso que aguarda a região conquistada.
Ainda que no presente, o torrão se ressentisse da falta de tudo, de bons portos, de estradas, de pontes e outras melhorias que permitissem a circulação das coisas e dos homens, Brandônio é um entusiasta das coisas da nova terra. É um panorama extraordinário do Brasil e da sua gente, seus brancos, índios, caboclos e escravos, dos começos do século XVII baseado na relação direta que o autor, provavelmente dono de lavoura, tinha com os fatos locais (*).
 
(*) Este mesmo modelo de diálogo vai ser retomado no romance Canaã de Graça Aranha, quando dois imigrantes alemães no Espírito Santo, Lentz e Milkau comentam as possíveis excelências do Brasil.

A ironia disto, é que as reclamações de Brandônio sobre as questões de infraestrutura terminarão por serem atendidas vinte anos mais tarde não pelos reinos Ibéricos, mas sim em razão da invasão holandesa do Nordeste, quando funcionários da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais, a WIC (West Indian Co.), entre eles o conde Mauricio de Nassau, a partir de 1637, vão providenciar as obras necessárias - canais, diques, drenagens - ao tráfico de mercadorias e ao escoamento da produção açucareira.
 
A dialética colonial

Deste modo, seguindo a perversa lógica da dialética colonial, a riqueza do Brasil contribuiu decisivamente para sua pobreza cultural, pois o país se viu por três séculos sem universidades, sem livrarias, sem jornais e muito menos impressoras ou editoras, enquanto que nos Estados Unidos, prosperava a Liga de Hera (as universidades de Harvard, Bronw, Columbia, Dartmouth, Pensilvânia, Princeton e Yale) e mais de dois mil títulos de jornais chegaram a circular antes dos norte-americanos obterem a Independência, em 1776.
Dado o abandono em que a colônia se encontrava não se deve estranhar que a primeira tentativa de se organizar as coisas da cultura no Brasil e seu primeiro organismo oficial tenha sido a Academia Brasílica dos Esquecidos, fundada na Bahia, em 1724.

É este imenso déficit cultural que gerações de Brasileiros têm, século após século, tentado de todos os modos superar.

Fonte: Terra.