terça-feira, 1 de março de 2011

A ÉTICA DO SUJEITO RESPONSÁVEL



Edgar Morin

        Nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que, nas nossas sociedades individualis­tas, a ética não se impõe imperativamente nem universalmente a cada cidadão; cada um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-ética. Estas finalidades po­dem ser particulares, voltadas a uma única pátria, a uma pessoa querida. Hoje, um grande número de nós vive sob a influência das grandes religiões universalistas como o budismo, o cristianismo, o is-lamismo. A mensagem fraternalista dessas reli­giões foi laicizada e endossada pela Revolução Francesa, depois amplificada e universalizada pe­lo socialismo. A fraternidade e a compaixão fo­ram incessantemente desmentidas pelas práticas cometidas em nome dessas religiões e do socialis­mo, mas permanecem o fiindo subjacente do qual podemos retirar e eleger nossas finalidades.
Eleger nossas finalidades, implica integrá-las profundamente em nossos espíritos e almas, jamais esquecê-las, jamais renunciar a elas, mes­mo se perdermos a esperança de constatar sua realização.
Elas encontram-se primeiramente inscritas na trindade "Liberdade, Igualdade, Fraterni­dade", sabendo-se que, entre esses três termos existe sempre não apenas complementaridade, mas também antagonismo, e que assumir a com­plexidade trinitária implica assumir uma estraté­gia complexa.
A finalidade principal da trindade se realiza na fraternidade. Ela é simultaneamente meio e fim. Tem um significado antropológico universal. Civilizar a terra é uma finalidade inseparável da precedente.
O DESAUO
Sabemos que nossas finalidades não vão ine­vitavelmente triunfar, e que a marcha da história


não é moral. Devemos visualizar seu insucesso pos­sível e até mesmo provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que so­mos conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida à inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e à estratégia que permite modificar a ação empreendida.
A ESTRATÉGIA
O maniqueísmo da ação política pode ser constatado apenas em seus escalões mais inferio­res e tem por efeito camuflar o aleatório e a in­certeza da ação.
O problema consiste em evitar o realismo trivial (adaptar-se ao imediato) e o irrealismo tri­vial (subtrair-se às constrições da realidade). O importante é ser realista no sentido complexo do termo (compreender a incerteza do real, sa­ber que há o possível, mesmo que ainda este­ja invisível no real), o que frequentemente po­de parecer irrealista. A incerteza do real pode ensejar tanto o idealismo ético (agir de acordo com suas finalidades e ideais) como o realismo estratégico.

Como na terrificante contenda de Jacó com o Anjo, tal como foi simbolizada no quadro de Delacroix, a estratégia luta contra o real, acaban­do por copular com ele.
A estratégia elabora um cenário de ação que examina as certezas e incertezas da situação, as probabilidades e as improbabilidades. Na práti­ca, ela se constrói mostrando-se disponível a to­das as modificações em função das informações que recebe, dos acasos, contratempos ou boas novidades que reencontra. A estratégia deve ora privilegiar a prudência, ora a audácia e, se possí­vel, as duas simultaneamente. Ela pode e deve, frequentemente, efetuar compromissos. Mas até que ponto? Não há uma resposta geral para essa questão, mas qualquer desafio quase sempre con­tém um risco, seja o da intransigência, que pode conduzir à derrota, ou o da transigência que pode levar à abdicação. De modo singular, e em fun­ção do contexto e de seu próprio desenvolvimen­to, é na estratégia que se coloca o problema da dialógica entre fins e meios, entre a realpolitïk e a idealpolitik.


idéias-guia
Uma ética política que se pretenda verda­deiramente humana supõe primordialmente a restauração do sujeito responsável. Lembremos que a eliminação do sujeito por uma elite cientí­fica e intelectual foi o delírio de uma subjetivida-de que se ignorava a si própria. A restauração do sujeito é uma pré-condição para o conhecimento objetivo (um conhecimento que ignorasse o su­jeito do conhecimento não saberia ser objetivo, e isso porque ignoraria o fato que não pode haver conhecimento objetivo sem um sujeito que o ope­re para atingir a objetividade). A restauração do sujeito comporta a exigência do auto-exame, a consciência da responsabilidade pessoal, e o en­cargo autónomo da ética (auto-ética).
O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos complexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas pa­lavras, por seus escritos, por seus atos. De outro, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, como seus escritos são compreen­didos, como seus atos são mal interpretados,distorcidos. Cada um, em suma, é 100% respon­sável e 100% irresponsável. Há uma outra respon­sabilidade, que é oriunda de nossa comunidade de destino planetário. E ela que sempre relembra nossa parcela de responsabilidade nesse destino comum, e não somente no que diz respeito ao pre­sente, mas também ao futuro, como apontou Hans Jonas. Aqui ainda devemos nos sentir responsá­veis - como se a luta por inteiro dependesse uni­camente de nós -, mas também não-responsáveis por todas as barbáries cometidas por inconsciên­cia ou vilania. A ética política deve conter algumas idéias-guia em suas formulações mais prioritárias:
l. A ética da religação
A noção de religação engloba tudo aquilo que faz comunicar, associar, solidarizar, frater-nizar; ela se opõe a tudo o que fragmenta, des­loca, disjunta (corta qualquer comunicação), re­duz (ignorância do outro, do vizinho, do huma­no, egocentrismo, etnocentrismo). A religação deve ser concebida como a religião do que reli-ga, fazendo frente à barbárie que divide (o dia­bo, diabolus, sendo o divisor).


2. A ética do debate
A regra do debate é inerente às instituições filosófica, científica e democrática. A ética do de­bate vai mais longe ainda: exige a primazia da argumentação e a rejeição da anátematização. Longe de descartar a polémica, ela a utiliza, mas rejeita todos os meios vis, todos os julgamentos de autoridade, assim como quaisquer tipos de re­jeições pelo desprezo, quaisquer insultos sobre as pessoas.
3. A ética da compreensão
A compreensão é complementar à explica­ção; esta utiliza os métodos adequados para co­nhecer os objetos enquanto objetos, e tende sem­pre a desumanizar o conhecimento dos compor­tamentos sociais e políticos; a compreensão per­mite conhecer o sujeito enquanto sujeito e tende sempre a reumanizar o conhecimento político. Acrescentemos a isso que a compreensão é ne­cessária a tudo aquilo que possa tornar as rela­ções humanas menos imbecis e ignóbeis.


4. A ética da magnanimidade
Contra a ética atroz da vingança e a ética impiedosa da punição, o que importa é tornar exemplar a ética da magnanimidade. Esta últi­ma, ilustrada em tempos passados pêlos atos so­beranos de clemência, como o de Augusto por Cinna, foi ilustrada em tempos recentes por Vaclav Havei que, quando eleito presidente, afir­mou para seus delatores: "Desde o momento em que me tornei presidente forneceram-me a lista de colegas que haviam me denunciado, mas eu a perdi logo depois do meio dia". Clemência tam­bém foi demonstrada por Nelson Mandela para com os sul-africanos brancos que cometeram ou aprovaram a ignomínia moral do apartheid. O re­torno da barbárie encontra-se claramente eviden­ciado pela renovação do ciclo infernal do ódio impiedoso, que transforma em inimigos todos aqueles que fazem parte de uma mesma etnia, religião, classe, nacionalidade, mantendo ativo o ciclo terrorismo/tortura. O único meio capaz de tentar quebrar esse ciclo infernal é a irrupção da magnanimidade, da clemência, da generosidade, da nobreza.


5. A incitação às boas vontades
Não existe mais nenhuma classe social privi­legiada que seja capaz de cumprir uma missão his­tórica, assim como nenhuma elite que seja porta­dora de um saber verídico. Ao contrário, nossas elites filosóficas, universitárias, científicas, técni­cas não dispõem de uma cultura que lhes permi­ta religar os conhecimentos e enfrentar a incer­teza, mas sim de um saber abstrato, parcelar e mutuante. Por tudo isso é que atualmente não podemos confiar na educação, pois antes de mais nada seria necessário educar os educadores, para que estes pudessem esclarecer os alunos. Por tudo isso, temos que voltar a apelar às boas vontades de todos, a solicitar que se associem entre si para salvar a humanidade do desastre. As boas vonta­des advirão de todos os horizontes e nelas esta­rão incluídos os inquietos, os bastardos, os órfãos, os generosos ...
6. A ética da resistência
A resistência, que constitui a primeira ou a última das éticas para estes tempos de trevas, foi a única resposta possível ao nazismo e ao estalinismo triunfantes, e talvez constitua a única resposta que possa vir a ser dada de imediato à barbárie que se amplia, mesmo no interior de nossa civilização.
O progresso, ética e politicamente indispen­sável, não constitui mais uma necessidade histó­rica; pior que isso, é a regressão bárbara que pa­rece cada vez mais provável. Quanto retrocesso em apenas algumas décadas! Nossa ética da reli-gação, que todos nós pensávamos que fosse se transformar na vanguarda de um movimento histórico planetário, não é e, talvez, não será nada mais do que um pequeno instrumento de resis­tência contra a barbárie...
Mas, de qualquer modo, a resistência às barbáries triunfantes sempre elabora um fermen­to, um germe para o futuro — quando ainda há um futuro.
Em conclusão, a ética não pode reduzir-se ao político, do mesmo modo que o político não pode se reduzir à ética. Não podemos opor esses dois termos de modo absoluto e nem comple-mentarizá-los harmoniosamente. Estamos con­denados à sua dialógica, ou melhor, a manter simultaneamente seu laço indissociável e seu an­tagonismo irredutível. Somente esta dialógica poderá fazer da política, essa arte da incerteza, uma grande arte que seja posta a serviço do ser humano.
Tradução do Prof. Edgard de Assis Carvalho
nota:
l. Este texto integra o ensaio "Da incerteza democráti­ca à ética política", incluído no livro Une politique de civilisation, de Edgar Morin & Sami Nair, Paris, Ed. Arléa, 1997, pp. 157-185. O excerto traduzido encon­tra-se nas pp. 181-185, e o direito de tradução foi gen­tilmente cedido pêlos autores.
 
Edgar Morin é Diretor Emérito do Centre National de Ia Recherche Scien-tifique, co-diretor do Centre D'Études Transdisciplinaires e Presidente funda­dor da Association pour Ia Pensée Com-plexe — com 87 institutos e universida­des associadas no mundo todo. O Prof. Morin é indiscutivelmente um dos pen­sadores mais fecundos e controvertidos da atualidade. Suas obras, mais de ses­senta, já foram publicadas e traduzidas na maioria das línguas ocidentais.


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