Nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que, nas nossas sociedades individualistas, a ética não se impõe imperativamente nem universalmente a cada cidadão; cada um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-ética. Estas finalidades podem ser particulares, voltadas a uma única pátria, a uma pessoa querida. Hoje, um grande número de nós vive sob a influência das grandes religiões universalistas como o budismo, o cristianismo, o is-lamismo. A mensagem fraternalista dessas religiões foi laicizada e endossada pela Revolução Francesa, depois amplificada e universalizada pelo socialismo. A fraternidade e a compaixão foram incessantemente desmentidas pelas práticas cometidas em nome dessas religiões e do socialismo, mas permanecem o fiindo subjacente do qual podemos retirar e eleger nossas finalidades.
Eleger nossas finalidades, implica integrá-las profundamente em nossos espíritos e almas, jamais esquecê-las, jamais renunciar a elas, mesmo se perdermos a esperança de constatar sua realização.
Elas encontram-se primeiramente inscritas na trindade "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", sabendo-se que, entre esses três termos existe sempre não apenas complementaridade, mas também antagonismo, e que assumir a complexidade trinitária implica assumir uma estratégia complexa.
A finalidade principal da trindade se realiza na fraternidade. Ela é simultaneamente meio e fim. Tem um significado antropológico universal. Civilizar a terra é uma finalidade inseparável da precedente.
O DESAUO
Sabemos que nossas finalidades não vão inevitavelmente triunfar, e que a marcha da história
não é moral. Devemos visualizar seu insucesso possível e até mesmo provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que somos conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida à inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e à estratégia que permite modificar a ação empreendida.
A ESTRATÉGIA
O maniqueísmo da ação política pode ser constatado apenas em seus escalões mais inferiores e tem por efeito camuflar o aleatório e a incerteza da ação.
O problema consiste em evitar o realismo trivial (adaptar-se ao imediato) e o irrealismo trivial (subtrair-se às constrições da realidade). O importante é ser realista no sentido complexo do termo (compreender a incerteza do real, saber que há o possível, mesmo que ainda esteja invisível no real), o que frequentemente pode parecer irrealista. A incerteza do real pode ensejar tanto o idealismo ético (agir de acordo com suas finalidades e ideais) como o realismo estratégico.
Como na terrificante contenda de Jacó com o Anjo, tal como foi simbolizada no quadro de Delacroix, a estratégia luta contra o real, acabando por copular com ele.
A estratégia elabora um cenário de ação que examina as certezas e incertezas da situação, as probabilidades e as improbabilidades. Na prática, ela se constrói mostrando-se disponível a todas as modificações em função das informações que recebe, dos acasos, contratempos ou boas novidades que reencontra. A estratégia deve ora privilegiar a prudência, ora a audácia e, se possível, as duas simultaneamente. Ela pode e deve, frequentemente, efetuar compromissos. Mas até que ponto? Não há uma resposta geral para essa questão, mas qualquer desafio quase sempre contém um risco, seja o da intransigência, que pode conduzir à derrota, ou o da transigência que pode levar à abdicação. De modo singular, e em função do contexto e de seu próprio desenvolvimento, é na estratégia que se coloca o problema da dialógica entre fins e meios, entre a realpolitïk e a idealpolitik.
idéias-guia
Uma ética política que se pretenda verdadeiramente humana supõe primordialmente a restauração do sujeito responsável. Lembremos que a eliminação do sujeito por uma elite científica e intelectual foi o delírio de uma subjetivida-de que se ignorava a si própria. A restauração do sujeito é uma pré-condição para o conhecimento objetivo (um conhecimento que ignorasse o sujeito do conhecimento não saberia ser objetivo, e isso porque ignoraria o fato que não pode haver conhecimento objetivo sem um sujeito que o opere para atingir a objetividade). A restauração do sujeito comporta a exigência do auto-exame, a consciência da responsabilidade pessoal, e o encargo autónomo da ética (auto-ética).
O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos complexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas palavras, por seus escritos, por seus atos. De outro, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, como seus escritos são compreendidos, como seus atos são mal interpretados,distorcidos. Cada um, em suma, é 100% responsável e 100% irresponsável. Há uma outra responsabilidade, que é oriunda de nossa comunidade de destino planetário. E ela que sempre relembra nossa parcela de responsabilidade nesse destino comum, e não somente no que diz respeito ao presente, mas também ao futuro, como apontou Hans Jonas. Aqui ainda devemos nos sentir responsáveis - como se a luta por inteiro dependesse unicamente de nós -, mas também não-responsáveis por todas as barbáries cometidas por inconsciência ou vilania. A ética política deve conter algumas idéias-guia em suas formulações mais prioritárias:
l. A ética da religação
A noção de religação engloba tudo aquilo que faz comunicar, associar, solidarizar, frater-nizar; ela se opõe a tudo o que fragmenta, desloca, disjunta (corta qualquer comunicação), reduz (ignorância do outro, do vizinho, do humano, egocentrismo, etnocentrismo). A religação deve ser concebida como a religião do que reli-ga, fazendo frente à barbárie que divide (o diabo, diabolus, sendo o divisor).
2. A ética do debate
A regra do debate é inerente às instituições filosófica, científica e democrática. A ética do debate vai mais longe ainda: exige a primazia da argumentação e a rejeição da anátematização. Longe de descartar a polémica, ela a utiliza, mas rejeita todos os meios vis, todos os julgamentos de autoridade, assim como quaisquer tipos de rejeições pelo desprezo, quaisquer insultos sobre as pessoas.
3. A ética da compreensão
A compreensão é complementar à explicação; esta utiliza os métodos adequados para conhecer os objetos enquanto objetos, e tende sempre a desumanizar o conhecimento dos comportamentos sociais e políticos; a compreensão permite conhecer o sujeito enquanto sujeito e tende sempre a reumanizar o conhecimento político. Acrescentemos a isso que a compreensão é necessária a tudo aquilo que possa tornar as relações humanas menos imbecis e ignóbeis.
4. A ética da magnanimidade
Contra a ética atroz da vingança e a ética impiedosa da punição, o que importa é tornar exemplar a ética da magnanimidade. Esta última, ilustrada em tempos passados pêlos atos soberanos de clemência, como o de Augusto por Cinna, foi ilustrada em tempos recentes por Vaclav Havei que, quando eleito presidente, afirmou para seus delatores: "Desde o momento em que me tornei presidente forneceram-me a lista de colegas que haviam me denunciado, mas eu a perdi logo depois do meio dia". Clemência também foi demonstrada por Nelson Mandela para com os sul-africanos brancos que cometeram ou aprovaram a ignomínia moral do apartheid. O retorno da barbárie encontra-se claramente evidenciado pela renovação do ciclo infernal do ódio impiedoso, que transforma em inimigos todos aqueles que fazem parte de uma mesma etnia, religião, classe, nacionalidade, mantendo ativo o ciclo terrorismo/tortura. O único meio capaz de tentar quebrar esse ciclo infernal é a irrupção da magnanimidade, da clemência, da generosidade, da nobreza.
5. A incitação às boas vontades
Não existe mais nenhuma classe social privilegiada que seja capaz de cumprir uma missão histórica, assim como nenhuma elite que seja portadora de um saber verídico. Ao contrário, nossas elites filosóficas, universitárias, científicas, técnicas não dispõem de uma cultura que lhes permita religar os conhecimentos e enfrentar a incerteza, mas sim de um saber abstrato, parcelar e mutuante. Por tudo isso é que atualmente não podemos confiar na educação, pois antes de mais nada seria necessário educar os educadores, para que estes pudessem esclarecer os alunos. Por tudo isso, temos que voltar a apelar às boas vontades de todos, a solicitar que se associem entre si para salvar a humanidade do desastre. As boas vontades advirão de todos os horizontes e nelas estarão incluídos os inquietos, os bastardos, os órfãos, os generosos ...
6. A ética da resistência
A resistência, que constitui a primeira ou a última das éticas para estes tempos de trevas, foi a única resposta possível ao nazismo e ao estalinismo triunfantes, e talvez constitua a única resposta que possa vir a ser dada de imediato à barbárie que se amplia, mesmo no interior de nossa civilização.
O progresso, ética e politicamente indispensável, não constitui mais uma necessidade histórica; pior que isso, é a regressão bárbara que parece cada vez mais provável. Quanto retrocesso em apenas algumas décadas! Nossa ética da reli-gação, que todos nós pensávamos que fosse se transformar na vanguarda de um movimento histórico planetário, não é e, talvez, não será nada mais do que um pequeno instrumento de resistência contra a barbárie...
Mas, de qualquer modo, a resistência às barbáries triunfantes sempre elabora um fermento, um germe para o futuro — quando ainda há um futuro.
Em conclusão, a ética não pode reduzir-se ao político, do mesmo modo que o político não pode se reduzir à ética. Não podemos opor esses dois termos de modo absoluto e nem comple-mentarizá-los harmoniosamente. Estamos condenados à sua dialógica, ou melhor, a manter simultaneamente seu laço indissociável e seu antagonismo irredutível. Somente esta dialógica poderá fazer da política, essa arte da incerteza, uma grande arte que seja posta a serviço do ser humano.
Tradução do Prof. Edgard de Assis Carvalho
nota:
l. Este texto integra o ensaio "Da incerteza democrática à ética política", incluído no livro Une politique de civilisation, de Edgar Morin & Sami Nair, Paris, Ed. Arléa, 1997, pp. 157-185. O excerto traduzido encontra-se nas pp. 181-185, e o direito de tradução foi gentilmente cedido pêlos autores.
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