Ao que tudo indica, 
a ocupação da reitoria da USP  foi de fato patrocinada por um grupo de aloprados, que atropelou o rito  das assembleias realizadas até então e, num ato de desespero  (calculado?), fez rolar morro abaixo uma pedra que, aos trancos, deveria  ser endereçada para pontos mais altos da discussão.

A tropa de choque entra em ação, a sociedade aplaude. Foto: Milton Jung/Flickr
Uma vez que essa pedra rolou, como se viu, tudo desandou.  Absolutamente tudo, o que se nota pela declaração do  ministro-candidato-a-prefeito 
(algo como: bater em viciado pode, em estudante, não)  e do governador (vamos dar aula de democracia para esses safadinhos),  passando pela atitude da própria polícia (tão aplaudida como o caveirão  do Bope que arrebenta favelas), de cinegrafistas (ávidos por flagrar os  “marginais” de camiseta GAP) e de muitos, mas muitos mesmo, cidadãos que  só esperavam o ataque aéreo dos japoneses em Pearl Harbor para, em nome  da legalidade, arremessar suas bombas atômicas sobre Hiroshima.
O episódio, em si isolado, é sintomático em vários aspectos. Primeiro  porque mostra que, como outros temas-tabus (questão agrária, aborto…), a  discussão sobre a rebeldia estudantil é hoje um convite para o enterro  do bom senso. O episódio foi, em todos os seus atos, uma demonstração do  que o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle chama de pensamento  binário do debate nacional – segundo o qual a mente humana, como  computadores pré-programados, só suporta a composição “zero” ou “um”. Ou  seja: estamos condicionados a um debate que só serve para dividir os  argumentos em “a favor” ou “contra”, “aliado” ou “inimigo”.
De um lado, uma minoria de estudantes que, sim, usa a universidade  para o que há de pior na vida pública, como politicagem e ignorância  sobre noções básicas de convivência; e que, queira ela ou não, atrai uma  nuvem de antipatia dentro da comunidade acadêmica e da opinião pública  que contamina qualquer avanço ou reivindicação séria, legítima e bem  costurada pelos estudantes de fato.
Do outro, uma parcela da opinião pública que jamais suportou qualquer  sinal de organização política – seja estudantil, sindical, partidária –  e que viu no episódio um pretexto para colocar as garras de fora,  cuspir sua raiva e taxar os estudantes, qualquer um que fosse contra a  presença da PM no campus, de baderneiro, vagabundo, privilegiado,  filhinho de papai, maconheiro e inútil. Porque bater em estudante com o  argumento de que não trabalha e, sob as asas dos pais, ainda não sabe  como a vida prática é dura é o mais fácil e covarde dos argumentos (como  se só os pais de família, que pagam impostos e vão à missa, reunissem  as condições necessárias para se graduar em cidadania para reclamar da  vida).

Cerca de 500 estudantes protestaram contra a detenção de colegas. Foto: Natália Natarelli
A ocupação da reitoria da maior universidade do País deu munição para  que boa parte da opinião pública (inclusive estudantes) testemunhasse,  graças à transmissão ao vivo das emissoras, a legitimação de seus  desprezos contra estudantes que, diferentemente deles, ainda ousam  apontam o dedo para o alto e dizer que alguma coisa está errada.
Originários de uma multidão crescida sob o mito do
 self made man  (“minhas conquistas são fruto do meu próprio trabalho, e o Estado muito  ajuda quando não me atrapalha”), muitos usaram canais de manifestação,  como as redes sociais, para despejar os argumentos mais covardes contra  todo (todo mesmo) universo estudantil, sobretudo o sistema público de  ensino, do “bem feito” ao “viva a legalidade”. Como se os ritos  democráticos tivessem sido respeitados desde o começo, quando o então  governador José Serra (PSDB) decidiu justamente desprezar a vontade da  comunidade acadêmica e nomear João Grandino Rodas
, o segundo  candidato mais votado, para o cargo. Como se fosse legítimo, também,  determinar, de cima para baixo, que a Polícia Militar transferisse para o  campus o seu 
modus operandi. Hoje a bronca, gota d’água de  toda a crise, foi por não se poder fumar maconha em paz – sim, é uma  discussão menor num país de tantos problemas; sim, pode revelar um  desnecessário privilégio a um grupo que não é inimputável; mas sim (e é  bom lembrar), existe, e não só na comunidade estudantil, uma questão em  torno da descriminalização da droga, que é aceita inclusive em marchas  na Paulista.

A praça do relógio, símbolo da cidade universitária. Foto: Vismar 
Mas, em meio às manifestações contrárias aos invasores (que, sim,  sabem o que fazem e não poderia descumprir decisão judicial), o que mais  estranha não é ver senhores engravatados, os tais cidadãos que  trabalham e pagam impostos, pedindo punição exemplar aos “aloprados”.  Estes estão preocupados demais em manter o estado das coisas exatamente  como está: assim como a polícia é útil na saída da favela, é útil também  que ela tome conta de qualquer, mas qualquer mesmo, insurgência  estudantil. Para a reitoria, o governador e os empresários que querem se  apropriar do espaço público para obter lucros privados, parece mais que  óbvio o interesse em deslegitimar não só ocupações estapafúrdias, como  foi o caso, mas também esmagar a voz, quiçá para sempre, do movimento  estudantil. (“Já pensou se eles, como os sem-terra, em vez de se  dividir, resolvem se unir para ir às ruas, pedir condições melhores de  vida e de trabalho e, mais tarde, entram no mercado do trabalho já  contaminados com ideias subversivas, entre elas a de que a vida não se  resume a dinheiro?”).

Força Tática em frente a reitoria. Foto: Milton Jung/Flickr
O que é estranho dessas reações todas de ojeriza aos uspianos é que  elas partem de quem muito cedo na vida já se apropriou do discurso dos  pais, criados num clima de “Brasil: Ame-o ou Deixo-o” herdado do regime  militar; e que, portanto, veem na obediência, no não-engajamento, na  docilidade, na adaptação a um mundo já pronto o único caminho possível  para salvar as próprias peles em um jogo arbitrário de saída. Tenho,  para isso, uma tese de botequim: a de que minha geração, nascida em  meados dos anos 80 e criada nos 90, foi o maior 
baby boom de  bundões que o Brasil já testemunhou; crescemos com medo da violência,  das doenças sexualmente transmissíveis e do outro (do favelado ao  muçulmano) e, por este motivo, decidimos nos enclausurar em bolsões de  segurança (o shopping, a escola particular e os condomínios fechados)  para poder nascer e morrer em paz, sem grandes objetivos na vida a não  ser aceitá-la. Por isso aceitamos abrir mão de uma relativa liberdade  (porque ela nunca é absoluta) para viver em segurança. E se amanhã algum  policial resolver matar algum suspeito (ela chama de “meliante”) entre  uma aula e outra na FFLCH ou na FEA, paciência, bola pra frente. Faz  parte do jogo. Em nome da segurança, aceitamos a diferença de forças em  jogo: estudante, quando alopra, compra cerveja e depreda a reitoria;  policial, quando alopra, atira. (Em tempo: nem todos os policiais  abusam, como nem todos os estudantes invadem; mas a diferença dos  estragos proporcionados entre os que, por lei, detêm o monopólio da  violência e os que não o detêm é abissal).
O caso de um aluno da faculdade de ciências sociais – curso visto por  parte da elite paulista como ponto de irradiação de tumulto tal qual  uma ogiva de Mahmoud Ahmadinejad – exemplifica a situação criada com a  simples presença da PM no campus: em menos de um ano, já foi abordado  cinco vezes por policiais.
Suspeito de quê não se sabe, e não está  cientificamente provada se há perseguição pelo fato de ser negro, mas  uma amiga dele, branca, relata: já ouviu de um policial que poderia ser  liberada porque não tinha o “perfil” de marginal.
 
Policiais prendem estudantes que ocupavam reitoria da USP. Foto: Milton Jung/Flickr
Uns aceitam a situação. Outros, pelos métodos certos ou não,  resolveram deixar claro que não aceitam.
Tudo isso me leva a dizer que  eu nutria uma simpatia, ainda que leve, levíssima, aos ingênuos  invasores que erraram a hora pensando que faziam história – até  começarem a agredir os repórteres que estavam lá para ouvi-los. Mesmo  assim, ainda parecem ser mais interessantes do que os coxinhas que,  vestidos como os pais, esquecem que um dia foram estudantes e que um dia  também pensaram que poderiam mudar o mundo. Hoje, engolem lama,  agradecem quando lhe chutam as cabeças e dormem pensando ser coerentes  aos seus princípios. Ou, como na música, “caminham para a morte pensando  em vencer na vida”.
 
Critique-se o quanto quiser a partidarização de parte do movimento,  mas são os estudantes os agentes de uma história que ainda somam coragem  e disposição para se organizar e promover discussões e manifestações  que, via de regra, apontam caminhos não observáveis por quem, a olhos  nus, está atolado nas funções diárias da divisão social do trabalho. O  empregado tem medo da greve e de perder o emprego; o patrão tem medo de  perder o lucro; o governador, o medo de perder poder. Mas os estudantes  estão, em tese, livres das amarras que os impediriam de simplesmente  optar por outros caminhos. Isso não deveria ser vergonhoso, nem apontado  como privilégio.
O fato é que o rótulo (e a imagem do invasor vestindo GAP) pegou bem  aos que tem alergia a organizações sociais. Legalidade, insegurança,  hipocrisia, racismo, perseguição (ou mania de), erros táticos,  partidarização, elitização do ensino, espetacularização da notícia,  truculência, tensão…São muitos os ingredientes que fazem do confronto  entre estudantes e reitoria/governo paulista um tema complexo, que não  poderia jamais descambar para o Fla-Flu. Mas descambou, graças à ação  desastrada de um grupo que, agora, se coloca como “perseguidos  políticos” – e virou tema de piada, ou pólvora pura, para um galão de  gasolina reservado por quem nunca deu a mínima para ideias como  coletividade, bom senso e democracia.