Matheus Pichonelli
09.11.2011 11:57
Ao que tudo indica, a ocupação da reitoria da USP foi de fato patrocinada por um grupo de aloprados, que atropelou o rito das assembleias realizadas até então e, num ato de desespero (calculado?), fez rolar morro abaixo uma pedra que, aos trancos, deveria ser endereçada para pontos mais altos da discussão.
Uma vez que essa pedra rolou, como se viu, tudo desandou. Absolutamente tudo, o que se nota pela declaração do ministro-candidato-a-prefeito (algo como: bater em viciado pode, em estudante, não) e do governador (vamos dar aula de democracia para esses safadinhos), passando pela atitude da própria polícia (tão aplaudida como o caveirão do Bope que arrebenta favelas), de cinegrafistas (ávidos por flagrar os “marginais” de camiseta GAP) e de muitos, mas muitos mesmo, cidadãos que só esperavam o ataque aéreo dos japoneses em Pearl Harbor para, em nome da legalidade, arremessar suas bombas atômicas sobre Hiroshima.
O episódio, em si isolado, é sintomático em vários aspectos. Primeiro porque mostra que, como outros temas-tabus (questão agrária, aborto…), a discussão sobre a rebeldia estudantil é hoje um convite para o enterro do bom senso. O episódio foi, em todos os seus atos, uma demonstração do que o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle chama de pensamento binário do debate nacional – segundo o qual a mente humana, como computadores pré-programados, só suporta a composição “zero” ou “um”. Ou seja: estamos condicionados a um debate que só serve para dividir os argumentos em “a favor” ou “contra”, “aliado” ou “inimigo”.
De um lado, uma minoria de estudantes que, sim, usa a universidade para o que há de pior na vida pública, como politicagem e ignorância sobre noções básicas de convivência; e que, queira ela ou não, atrai uma nuvem de antipatia dentro da comunidade acadêmica e da opinião pública que contamina qualquer avanço ou reivindicação séria, legítima e bem costurada pelos estudantes de fato.
Do outro, uma parcela da opinião pública que jamais suportou qualquer sinal de organização política – seja estudantil, sindical, partidária – e que viu no episódio um pretexto para colocar as garras de fora, cuspir sua raiva e taxar os estudantes, qualquer um que fosse contra a presença da PM no campus, de baderneiro, vagabundo, privilegiado, filhinho de papai, maconheiro e inútil. Porque bater em estudante com o argumento de que não trabalha e, sob as asas dos pais, ainda não sabe como a vida prática é dura é o mais fácil e covarde dos argumentos (como se só os pais de família, que pagam impostos e vão à missa, reunissem as condições necessárias para se graduar em cidadania para reclamar da vida).
A ocupação da reitoria da maior universidade do País deu munição para que boa parte da opinião pública (inclusive estudantes) testemunhasse, graças à transmissão ao vivo das emissoras, a legitimação de seus desprezos contra estudantes que, diferentemente deles, ainda ousam apontam o dedo para o alto e dizer que alguma coisa está errada.
Originários de uma multidão crescida sob o mito do self made man (“minhas conquistas são fruto do meu próprio trabalho, e o Estado muito ajuda quando não me atrapalha”), muitos usaram canais de manifestação, como as redes sociais, para despejar os argumentos mais covardes contra todo (todo mesmo) universo estudantil, sobretudo o sistema público de ensino, do “bem feito” ao “viva a legalidade”. Como se os ritos democráticos tivessem sido respeitados desde o começo, quando o então governador José Serra (PSDB) decidiu justamente desprezar a vontade da comunidade acadêmica e nomear João Grandino Rodas, o segundo candidato mais votado, para o cargo. Como se fosse legítimo, também, determinar, de cima para baixo, que a Polícia Militar transferisse para o campus o seu modus operandi. Hoje a bronca, gota d’água de toda a crise, foi por não se poder fumar maconha em paz – sim, é uma discussão menor num país de tantos problemas; sim, pode revelar um desnecessário privilégio a um grupo que não é inimputável; mas sim (e é bom lembrar), existe, e não só na comunidade estudantil, uma questão em torno da descriminalização da droga, que é aceita inclusive em marchas na Paulista.
Mas, em meio às manifestações contrárias aos invasores (que, sim, sabem o que fazem e não poderia descumprir decisão judicial), o que mais estranha não é ver senhores engravatados, os tais cidadãos que trabalham e pagam impostos, pedindo punição exemplar aos “aloprados”. Estes estão preocupados demais em manter o estado das coisas exatamente como está: assim como a polícia é útil na saída da favela, é útil também que ela tome conta de qualquer, mas qualquer mesmo, insurgência estudantil. Para a reitoria, o governador e os empresários que querem se apropriar do espaço público para obter lucros privados, parece mais que óbvio o interesse em deslegitimar não só ocupações estapafúrdias, como foi o caso, mas também esmagar a voz, quiçá para sempre, do movimento estudantil. (“Já pensou se eles, como os sem-terra, em vez de se dividir, resolvem se unir para ir às ruas, pedir condições melhores de vida e de trabalho e, mais tarde, entram no mercado do trabalho já contaminados com ideias subversivas, entre elas a de que a vida não se resume a dinheiro?”).
O que é estranho dessas reações todas de ojeriza aos uspianos é que elas partem de quem muito cedo na vida já se apropriou do discurso dos pais, criados num clima de “Brasil: Ame-o ou Deixo-o” herdado do regime militar; e que, portanto, veem na obediência, no não-engajamento, na docilidade, na adaptação a um mundo já pronto o único caminho possível para salvar as próprias peles em um jogo arbitrário de saída. Tenho, para isso, uma tese de botequim: a de que minha geração, nascida em meados dos anos 80 e criada nos 90, foi o maior baby boom de bundões que o Brasil já testemunhou; crescemos com medo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis e do outro (do favelado ao muçulmano) e, por este motivo, decidimos nos enclausurar em bolsões de segurança (o shopping, a escola particular e os condomínios fechados) para poder nascer e morrer em paz, sem grandes objetivos na vida a não ser aceitá-la. Por isso aceitamos abrir mão de uma relativa liberdade (porque ela nunca é absoluta) para viver em segurança. E se amanhã algum policial resolver matar algum suspeito (ela chama de “meliante”) entre uma aula e outra na FFLCH ou na FEA, paciência, bola pra frente. Faz parte do jogo. Em nome da segurança, aceitamos a diferença de forças em jogo: estudante, quando alopra, compra cerveja e depreda a reitoria; policial, quando alopra, atira. (Em tempo: nem todos os policiais abusam, como nem todos os estudantes invadem; mas a diferença dos estragos proporcionados entre os que, por lei, detêm o monopólio da violência e os que não o detêm é abissal).
O caso de um aluno da faculdade de ciências sociais – curso visto por parte da elite paulista como ponto de irradiação de tumulto tal qual uma ogiva de Mahmoud Ahmadinejad – exemplifica a situação criada com a simples presença da PM no campus: em menos de um ano, já foi abordado cinco vezes por policiais.
Suspeito de quê não se sabe, e não está cientificamente provada se há perseguição pelo fato de ser negro, mas uma amiga dele, branca, relata: já ouviu de um policial que poderia ser liberada porque não tinha o “perfil” de marginal.
Uns aceitam a situação. Outros, pelos métodos certos ou não, resolveram deixar claro que não aceitam.
Tudo isso me leva a dizer que eu nutria uma simpatia, ainda que leve, levíssima, aos ingênuos invasores que erraram a hora pensando que faziam história – até começarem a agredir os repórteres que estavam lá para ouvi-los. Mesmo assim, ainda parecem ser mais interessantes do que os coxinhas que, vestidos como os pais, esquecem que um dia foram estudantes e que um dia também pensaram que poderiam mudar o mundo. Hoje, engolem lama, agradecem quando lhe chutam as cabeças e dormem pensando ser coerentes aos seus princípios. Ou, como na música, “caminham para a morte pensando em vencer na vida”.
Critique-se o quanto quiser a partidarização de parte do movimento, mas são os estudantes os agentes de uma história que ainda somam coragem e disposição para se organizar e promover discussões e manifestações que, via de regra, apontam caminhos não observáveis por quem, a olhos nus, está atolado nas funções diárias da divisão social do trabalho. O empregado tem medo da greve e de perder o emprego; o patrão tem medo de perder o lucro; o governador, o medo de perder poder. Mas os estudantes estão, em tese, livres das amarras que os impediriam de simplesmente optar por outros caminhos. Isso não deveria ser vergonhoso, nem apontado como privilégio.
O fato é que o rótulo (e a imagem do invasor vestindo GAP) pegou bem aos que tem alergia a organizações sociais. Legalidade, insegurança, hipocrisia, racismo, perseguição (ou mania de), erros táticos, partidarização, elitização do ensino, espetacularização da notícia, truculência, tensão…São muitos os ingredientes que fazem do confronto entre estudantes e reitoria/governo paulista um tema complexo, que não poderia jamais descambar para o Fla-Flu. Mas descambou, graças à ação desastrada de um grupo que, agora, se coloca como “perseguidos políticos” – e virou tema de piada, ou pólvora pura, para um galão de gasolina reservado por quem nunca deu a mínima para ideias como coletividade, bom senso e democracia.
Uma vez que essa pedra rolou, como se viu, tudo desandou. Absolutamente tudo, o que se nota pela declaração do ministro-candidato-a-prefeito (algo como: bater em viciado pode, em estudante, não) e do governador (vamos dar aula de democracia para esses safadinhos), passando pela atitude da própria polícia (tão aplaudida como o caveirão do Bope que arrebenta favelas), de cinegrafistas (ávidos por flagrar os “marginais” de camiseta GAP) e de muitos, mas muitos mesmo, cidadãos que só esperavam o ataque aéreo dos japoneses em Pearl Harbor para, em nome da legalidade, arremessar suas bombas atômicas sobre Hiroshima.
O episódio, em si isolado, é sintomático em vários aspectos. Primeiro porque mostra que, como outros temas-tabus (questão agrária, aborto…), a discussão sobre a rebeldia estudantil é hoje um convite para o enterro do bom senso. O episódio foi, em todos os seus atos, uma demonstração do que o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle chama de pensamento binário do debate nacional – segundo o qual a mente humana, como computadores pré-programados, só suporta a composição “zero” ou “um”. Ou seja: estamos condicionados a um debate que só serve para dividir os argumentos em “a favor” ou “contra”, “aliado” ou “inimigo”.
De um lado, uma minoria de estudantes que, sim, usa a universidade para o que há de pior na vida pública, como politicagem e ignorância sobre noções básicas de convivência; e que, queira ela ou não, atrai uma nuvem de antipatia dentro da comunidade acadêmica e da opinião pública que contamina qualquer avanço ou reivindicação séria, legítima e bem costurada pelos estudantes de fato.
Do outro, uma parcela da opinião pública que jamais suportou qualquer sinal de organização política – seja estudantil, sindical, partidária – e que viu no episódio um pretexto para colocar as garras de fora, cuspir sua raiva e taxar os estudantes, qualquer um que fosse contra a presença da PM no campus, de baderneiro, vagabundo, privilegiado, filhinho de papai, maconheiro e inútil. Porque bater em estudante com o argumento de que não trabalha e, sob as asas dos pais, ainda não sabe como a vida prática é dura é o mais fácil e covarde dos argumentos (como se só os pais de família, que pagam impostos e vão à missa, reunissem as condições necessárias para se graduar em cidadania para reclamar da vida).
A ocupação da reitoria da maior universidade do País deu munição para que boa parte da opinião pública (inclusive estudantes) testemunhasse, graças à transmissão ao vivo das emissoras, a legitimação de seus desprezos contra estudantes que, diferentemente deles, ainda ousam apontam o dedo para o alto e dizer que alguma coisa está errada.
Originários de uma multidão crescida sob o mito do self made man (“minhas conquistas são fruto do meu próprio trabalho, e o Estado muito ajuda quando não me atrapalha”), muitos usaram canais de manifestação, como as redes sociais, para despejar os argumentos mais covardes contra todo (todo mesmo) universo estudantil, sobretudo o sistema público de ensino, do “bem feito” ao “viva a legalidade”. Como se os ritos democráticos tivessem sido respeitados desde o começo, quando o então governador José Serra (PSDB) decidiu justamente desprezar a vontade da comunidade acadêmica e nomear João Grandino Rodas, o segundo candidato mais votado, para o cargo. Como se fosse legítimo, também, determinar, de cima para baixo, que a Polícia Militar transferisse para o campus o seu modus operandi. Hoje a bronca, gota d’água de toda a crise, foi por não se poder fumar maconha em paz – sim, é uma discussão menor num país de tantos problemas; sim, pode revelar um desnecessário privilégio a um grupo que não é inimputável; mas sim (e é bom lembrar), existe, e não só na comunidade estudantil, uma questão em torno da descriminalização da droga, que é aceita inclusive em marchas na Paulista.
Mas, em meio às manifestações contrárias aos invasores (que, sim, sabem o que fazem e não poderia descumprir decisão judicial), o que mais estranha não é ver senhores engravatados, os tais cidadãos que trabalham e pagam impostos, pedindo punição exemplar aos “aloprados”. Estes estão preocupados demais em manter o estado das coisas exatamente como está: assim como a polícia é útil na saída da favela, é útil também que ela tome conta de qualquer, mas qualquer mesmo, insurgência estudantil. Para a reitoria, o governador e os empresários que querem se apropriar do espaço público para obter lucros privados, parece mais que óbvio o interesse em deslegitimar não só ocupações estapafúrdias, como foi o caso, mas também esmagar a voz, quiçá para sempre, do movimento estudantil. (“Já pensou se eles, como os sem-terra, em vez de se dividir, resolvem se unir para ir às ruas, pedir condições melhores de vida e de trabalho e, mais tarde, entram no mercado do trabalho já contaminados com ideias subversivas, entre elas a de que a vida não se resume a dinheiro?”).
O que é estranho dessas reações todas de ojeriza aos uspianos é que elas partem de quem muito cedo na vida já se apropriou do discurso dos pais, criados num clima de “Brasil: Ame-o ou Deixo-o” herdado do regime militar; e que, portanto, veem na obediência, no não-engajamento, na docilidade, na adaptação a um mundo já pronto o único caminho possível para salvar as próprias peles em um jogo arbitrário de saída. Tenho, para isso, uma tese de botequim: a de que minha geração, nascida em meados dos anos 80 e criada nos 90, foi o maior baby boom de bundões que o Brasil já testemunhou; crescemos com medo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis e do outro (do favelado ao muçulmano) e, por este motivo, decidimos nos enclausurar em bolsões de segurança (o shopping, a escola particular e os condomínios fechados) para poder nascer e morrer em paz, sem grandes objetivos na vida a não ser aceitá-la. Por isso aceitamos abrir mão de uma relativa liberdade (porque ela nunca é absoluta) para viver em segurança. E se amanhã algum policial resolver matar algum suspeito (ela chama de “meliante”) entre uma aula e outra na FFLCH ou na FEA, paciência, bola pra frente. Faz parte do jogo. Em nome da segurança, aceitamos a diferença de forças em jogo: estudante, quando alopra, compra cerveja e depreda a reitoria; policial, quando alopra, atira. (Em tempo: nem todos os policiais abusam, como nem todos os estudantes invadem; mas a diferença dos estragos proporcionados entre os que, por lei, detêm o monopólio da violência e os que não o detêm é abissal).
O caso de um aluno da faculdade de ciências sociais – curso visto por parte da elite paulista como ponto de irradiação de tumulto tal qual uma ogiva de Mahmoud Ahmadinejad – exemplifica a situação criada com a simples presença da PM no campus: em menos de um ano, já foi abordado cinco vezes por policiais.
Suspeito de quê não se sabe, e não está cientificamente provada se há perseguição pelo fato de ser negro, mas uma amiga dele, branca, relata: já ouviu de um policial que poderia ser liberada porque não tinha o “perfil” de marginal.
Uns aceitam a situação. Outros, pelos métodos certos ou não, resolveram deixar claro que não aceitam.
Tudo isso me leva a dizer que eu nutria uma simpatia, ainda que leve, levíssima, aos ingênuos invasores que erraram a hora pensando que faziam história – até começarem a agredir os repórteres que estavam lá para ouvi-los. Mesmo assim, ainda parecem ser mais interessantes do que os coxinhas que, vestidos como os pais, esquecem que um dia foram estudantes e que um dia também pensaram que poderiam mudar o mundo. Hoje, engolem lama, agradecem quando lhe chutam as cabeças e dormem pensando ser coerentes aos seus princípios. Ou, como na música, “caminham para a morte pensando em vencer na vida”.
Critique-se o quanto quiser a partidarização de parte do movimento, mas são os estudantes os agentes de uma história que ainda somam coragem e disposição para se organizar e promover discussões e manifestações que, via de regra, apontam caminhos não observáveis por quem, a olhos nus, está atolado nas funções diárias da divisão social do trabalho. O empregado tem medo da greve e de perder o emprego; o patrão tem medo de perder o lucro; o governador, o medo de perder poder. Mas os estudantes estão, em tese, livres das amarras que os impediriam de simplesmente optar por outros caminhos. Isso não deveria ser vergonhoso, nem apontado como privilégio.
O fato é que o rótulo (e a imagem do invasor vestindo GAP) pegou bem aos que tem alergia a organizações sociais. Legalidade, insegurança, hipocrisia, racismo, perseguição (ou mania de), erros táticos, partidarização, elitização do ensino, espetacularização da notícia, truculência, tensão…São muitos os ingredientes que fazem do confronto entre estudantes e reitoria/governo paulista um tema complexo, que não poderia jamais descambar para o Fla-Flu. Mas descambou, graças à ação desastrada de um grupo que, agora, se coloca como “perseguidos políticos” – e virou tema de piada, ou pólvora pura, para um galão de gasolina reservado por quem nunca deu a mínima para ideias como coletividade, bom senso e democracia.
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