No fim do século 18, Túpac Amaru liderou a maior
rebelião indígena da América, que incendiou o coração dos Andes e inspirou
revolucionários como Bolívar e Che Guevara
Alessandro
Meiguins | 01/11/2004 00h00
O mundo
amanheceu ao contrário naquele dia em Tinta, um pequeno povoado no sul do
vice-reino do Peru. Acostumada a ser explorada e maltratada pelas tropas do
mandachuva local, o espanhol Antonio Arriaga, a população mal conseguia
acreditar que era ele quem dava seus últimos suspiros, pendurado pelo pescoço
na ponta de uma corda, em plena praça central do vilarejo. Ao seu lado,
comandando a execução, estava José Gabriel Túpac Amaru. Vestido para a guerra,
com o tradicional ornamento inca em forma de um sol dourado no peito, convocava
aos berros índios, mestiços e negros para lutar contra a dominação espanhola.
Naquele 4 de novembro de 1780, com o corpo de Arriaga balançando atrás de si,
Túpac Amaru, descendente da linhagem imperial dos incas, declarou que não
existiam mais impostos e que os escravos estavam livres. “Foi o início de uma
rebelião que se espalharia pelos Andes e chegaria até os altiplanos
bolivianos”, diz Julio Vera del Carpio, historiador da Casa da Cultura Peruana,
em São Paulo. Quase 300 anos depois de os espanhóis desembarcarem na América, o
filho do sol estava de volta.
Os
espanhóis desembarcaram na América em 1492 ávidos por encontrar riquezas que
financiassem seus navios, suas armas e sua nobreza. Quando chegaram ao Peru, em
1527, e descobriram as minas de prata da região, não perderam tempo. Reuniram
um exército sob o comando de Francisco Pizarro e trataram de eliminar todo
aquele que pudesse afastá-los de seu objetivo. Por “todo aquele” entenda-se os
incas, que habitavam desde as cordilheiras no Peru até os altiplanos
bolivianos. Em 1532, os espanhóis iniciaram uma conquista rápida e implacável.
Com a vantagem das armas de fogo e do duro aço espanhol, submeteram os
guerreiros indígenas e suas lanças de cobre. Pizarro conquistou Cusco, a capital
inca, e capturou e executou Atahualpa, seu imperador. Em seguida nomeou um novo
ocupante para o trono: Manco Inca Yupanqui. Pouco tempo depois, no entanto,
Manco Inca percebeu que estava sendo usado pelos espanhóis e fugiu de Cusco,
iniciando uma revolta. A aventura durou pouco: os espanhóis mataram Manco Inca
e seus sucessores. O último foco de resistência foi derrotado em 1572, com o
enforcamento do derradeiro imperador inca, o primeiro Túpac Amaru (foram vários
“Túpacs”). Foi o ponto final na civilização inca na América do Sul, “que ocupou
um território maior que o do Império Romano”, diz Antonio Núnez Jiménez, no
livro Nuestra América. A partir desse momento, seus mais de 3 milhões de
habitantes tinham um novo senhor.
A
primeira coisa que os novos donos do pedaço fizeram foi estabelecer a “mita” –
o trabalho forçado nas minas de prata e mercúrio. “Os índios eram convocados
pelos espanhóis, arrastados a pé através dos vales montanhosos e muitos morriam
exauridos no caminho”, diz Carpio. “Quando chegavam, tinham um breve descanso
e, um ou dois dias depois, entravam nos estreitos buracos na terra em busca dos
metais. Poucos sobreviviam por muito tempo às longas jornadas de trabalho, que
chegavam a uma semana inteira dentro das minas, sem direito a alimentos ou
descanso.” A Igreja teve papel especial nessa história. Extremamente
religiosos, os incas foram levados a crer que o rei da Espanha substituíra seu
imperador no lugar reservado ao representante divino na Terra. Servir ao rei
era como trabalhar para o próprio Deus-sol e ao morrer nas minas de prata
estavam salvando suas almas do inferno.
Segundo
Carpio, nas províncias os corregedores (espécie de prefeitos) tinham toda a
liberdade para matar quantos índios fossem necessários para que a extração de
prata continuasse a todo vapor. No entanto, em 200 anos de dominação, os
espanhóis não eliminaram completamente as lideranças indígenas. Pelo contrário,
parte do controle sobre a população era feita com o consentimento e apoio
desses líderes – chamados de curacas, descendentes da nobreza inca. Convertidos
ao catolicismo, muitos, inclusive, recrutavam membros das tribos para o
trabalho forçado nas minas.
Descendente
do primeiro Túpac, José Gabriel Túpac Amaru era um dos líderes que discordavam
dessa prática. Curaca de Pampamarca, Tungasuca e Surimana, morava na província
de Tinta, a 100 quilômetros de Cusco. Túpac herdou de sua família 70 pares de
mulas, com as quais transportava mercadorias através dos Andes. No meio daquela
região montanhosa, ter um par de mulas era como ter um caminhão. Túpac era
próspero, respeitado e bem relacionado. Insatisfeito com o que via na região,
defendia junto às autoridades espanholas uma reforma no sistema colonial. Aos
tribunais de Lima encaminhara um pedido oficial em que pediu a eliminação do
cargo do corregedor, substituindo-o por prefeitos eleitos nas províncias e
povoados, e o fim da mita. Nada conseguiu. Aos poucos, passou a espalhar a
idéia de rebelião. Em uma carta aberta à população, dizia que os corregedores
faziam do sangue dos peruanos “sustento para sua vaidade”. Conseguiu a simpatia
e apoio de alguns curacas, que se dispuseram a lutar.
Tinta foi
apenas o primeiro alvo da revolta. Após matar Arriaga, Túpac e seus homens
percorreram povoados e vilas da região, prendendo e enforcando as autoridades
espanholas que encontravam. Ficavam com seu dinheiro e armas e distribuíam seus
bens entre a população. Túpac nomeou chefes locais e conseguiu que milhares de
pessoas aderissem à sua tropa. Aterrorizado com a rapidez com que a revolta se
espalhava, o bispo de Cusco, Juan Manuel de Moscoso y Peralta, enviou 1 500
soldados para eliminar o rebelde. Em 18 de novembro, no povoado de Sangarara,
entre Cusco e Tinta, Túpac enfrentou o exército do rei com 6 mil homens sob seu
comando. Em menos de um dia o inca cercou os soldados do bispo. Depois de
intensos combates, o último grupo de espanhóis se refugiou na igreja do
povoado, esperando que o indígena poupasse o local sagrado. Túpac não quis
saber: invadiu a igreja e matou todos. Em represália, Moscoso y Peralta
excomungou Túpac Amaru e seus seguidores. Essa era a maior desonra que alguém
poderia sofrer na época. Tanto para católicos quanto para indígenas, a
excomunhão significava que a pessoa estava distante de Deus. O efeito da
punição logo se fez sentir. “Por conta disso, numerosos adeptos da causa
tupamarista abandonaram suas fileiras ou deixaram de nelas ingressar”, afirma
Kátia Baggio, historiadora da Universidade Federal de Minas Gerais.
Túpac se
preparou para invadir Cusco. A estratégia era tomar Puno, que ficava entre
Cusco e Potosí, para depois avançar sobre a capital. No entanto, após os
eventos em Sangarara, o vice-rei do Peru, Agustín de Jáuregui, resolveu pedir
auxílio à Espanha. Se as tropas do rei Carlos III chegassem ao Peru, a rebelião
não teria chance, por isso o inca adiantou seus planos. Cusco era uma
verdadeira fortaleza. Cercada de grandes muralhas de pedra, a antiga capital do
império inca tinha uma rígida planificação urbana em forma quadriculada, cujo
desenho lembrava a forma de um puma. As tropas da cidade partiram em direção
aos rebeldes, para conter sua chegada, enquanto mais soldados preparavam a
defesa. Muitos curacas católicos, junto com suas tribos, se mostraram fiéis à
Igreja e ao rei da Espanha, e ajudaram os europeus a montar uma estratégia para
conter os rebeldes. O clima de agitação e expectativa diante da iminente
invasão levou a cidade ao caos.
Em 28 de
dezembro de 1780, Túpac chegou ao limite norte de Cusco, uma região chamada
Cerro Picchu. Seguiam com ele mais de 40 mil homens, embora poucos estivessem
armados e preparados para a luta. Seus planos contavam com um ataque vindo do
nordeste, por Diego Cristóbal, irmão de Túpac, e com a adesão da população
indígena local. Em 2 de janeiro de 1781 os combates começaram. Por dias as
tropas do vice-rei, cerca de 12 mil homens, conseguiram manter os invasores
afastados da cidade, tempo suficiente para receberem um reforço de 8 mil
homens, seis canhões e 3 mil fuzis vindos de Lima. Os rebeldes, ao contrário,
viram seus planos falharem. Diego Cristóbal não conseguiu ultrapassar as
defesas espanholas do rio Urubamba e recuou. O policiamento ostensivo nas ruas
de Cusco reprimiu qualquer tentativa local de sublevação. Em 8 de janeiro,
Túpac fez uma tentativa desesperada e atacou a cidade com força total. A
violenta batalha durou cerca de sete horas, mas as defesas se mantiveram
praticamente intactas e os realistas tiveram poucas baixas.
Túpac
desistiu do cerco e se aquartelou em Tinta. Em março, com o reforço de 17 mil soldados
espanhóis, as tropas do vice-rei resolveram sufocar de vez a rebelião. Em 5 de
abril, os espanhóis infligiram uma gigantesca derrota às tropas tupamaristas.
Depois de um dia de combates, ofereceram perdão àqueles que abandonassem Túpac
e se unissem a eles. No dia seguinte, cercaram o exército rebelde e conseguiram
outra grande vitória, graças a informações entregues por traidores do exército
inca. Os rebeldes se dispersaram e fugiram da cidade, mas Túpac e seus
colaboradores mais próximos foram presos em um emboscada preparada por seus
próprios partidários. Apenas uma pequena parte do exército rebelde conseguiu se
refugiar nas montanhas. Na mesma semana, para comemorar sua vitória, os
espanhóis enforcaram 70 curacas rebeldes na mesma praça onde o corregedor
Arriaga perecera.
Túpac e
sua família foram levados a Cusco, onde foram torturados para que dessem
informações sobre os demais líderes rebeldes, como Diego Cristóbal, que
conseguira fugir. “Diz a tradição que, sem ter como se comunicar com seus companheiros,
Túpac escreveu uma carta com seu próprio sangue, em um pedaço de suas vestes,
convocando todos para a luta, mas a mensagem acabou interceptada pelos
espanhóis”, diz o antropólogo Rodrigo Montoya, da Universidade San Marcos, em
Lima. Após 35 dias de torturas, em 18 de maio de 1871 Tupac foi levado para
receber sua sentença em praça pública, no centro de Cusco: esquartejamento.
Antes que a pena fosse aplicada, no entanto, Túpac assistiu ao enforcamento de
seus homens rebeldes. Depois, dois filhos seus, Hipólito e Fernando, junto com
Micaela, sua mulher, tiveram suas línguas cortadas, antes de serem executados.
Enfim chegou sua vez. “Seus braços e pernas foram atados a quatro cavalos, que
foram incitados a correrem cada um para uma direção”, diz Carpio. “Depois do
insucesso de várias tentativas, os espanhóis desistiram do esquartejamento e
cortaram a cabeça do inca.”
A
rebelião no Alto Peru, no entanto, não acabou aí. Prosseguiu em duas frentes.
Sob a liderança de Túpac Catari, cujo verdadeiro nome era Julián Apasa, e que
adotou o apelido em alusão a Túpac Amaru e Tomás Catari, outro líder
revolucionário morto pelos espanhóis na Bolívia, a revolta chegou a La Paz.
Catari cercou a cidade em março de 1781, com mais de 10 mil homens, e fez um
violento ataque em que mais de 10 mil morreram – sendo 8 mil indígenas. Após
109 dias de sítio as tropas realistas furaram o cerco. Catari voltou a atacar
em agosto, mas foi derrotado e preso. Em 31 de novembro de 1781 foi executado.
A segunda
onda de resistência se deu na região montanhosa em torno de Cusco, onde Diego
Cristóbal continuou comandando o então reduzido exército de Túpac. Em maio de
1781, ele chegou a sitiar Puno, mas não a invadiu. Focos de conflito
continuaram até 1782, quando Diego Cristóbal assinou um tratado de paz com os
espanhóis. Apesar disso, depois de uma ameaça de levante em 1783, Diego e 120
supostos envolvidos acabaram executados.
Nos anos
que se seguiram, os colonizadores exerceram uma forte repressão à cultura
incaica e qualquer ornamento da nobreza inca foi proibido. “Falar o nome de
Túpac Amaru em público virou um insulto aos espanhóis, um ato de rebeldia. A
perseguição, no entanto, só aumentou o mito que se criou em torno dele e fez
com que seus lendários feitos influenciassem gerações de revolucionários
americanos, de Bolívar a Che Guevara”, diz Montoya. O poeta chileno Pablo
Neruda (1904-1973), em um verso de 1970, recordou Túpac “Como um sol vencido/
uma luz desaparecida.../ Túpac germina na terra americana”.