sábado, 9 de março de 2013

REVOLUÇÃO INDUSTRIAL


A CLASSE TRABALHADORA NA INGLATERRA EM MEADOS DO SÉCULO XIX

Friedrich Engels

Em 1845 era publicado, em Leipzig, Alemanha, a primeira edição do livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de autoria de Friedrich Engels (1820-1895), um dos fundadores do materialismo histórico. Embora se trate de uma obra clássica, a primeira edição brasileira foi publicada, integralmente, apenas em 1986, ou seja, pouco mais de 140 anos depois da edição original.

Conforme o próprio Engels afirma, ' 'da primeira à última pá­gina, foi um auto de acusação contra a burguesia inglesa que le­vantei". De fato, a partir da análise do trabalho do autor pode-se perceber as dramáticas condições de vida a que foram relegados os produtores diretos a partir da Revolução Industrial. Despojados de meios próprios de subsistência, os trabalhadores são obrigados, por uma mera questão de sobrevivência, a ingressar no mundo do trabalho em condições, no mínimo, desumanas. Os relatos de Engels, apoiados em farta documentação, nesse caso, falam por si.

A compreensão da situação da classe trabalhadora leva Engels a terminar seu trabalho com uma advertência às classes dominantes: "O abismo que separa as classes cava-se cada vez mais, o espírito de resistência penetra cada vez mais nos operários, a exasperação torna-se mais viva, as escaramuças isoladas na guerrilha concentram-se para se transformar em combates e em manifestações mais importantes, e bastará, em breve, um ligeiro choque para desencadear a avalancha. Então, um verdadeiro grito de guerra ecoará em todo o país: Guerra aos palácios, paz nos casebres!, mas então será muito tarde para que os ricos possam ainda se defender".

Os trechos selecionados revelam, na sua totalidade, em vários aspectos, a extensão do drama dos trabalhadores ingleses do século XIX.

IDADE DOS OPERÁRIOS, PROPORÇÃO HOMENS/MULHERES, CONDIÇÕES DAS CRIANÇAS

Retiraremos do discurso em que, a 15 de março de 1844, Lord Ashley apresentou a sua moção sobre a jornada de 10 horas à Câmara dos Comuns alguns dados que não foram refutados pêlos industriais sobre a idade dos operários e a proporção de homens e mulheres. Estes dados só se aplicam a uma parte da indústria inglesa. Dos 4!9.590  operários  de  fábrica  do  império  britânico   (em   1839), 192.887 (ou seja, quase metade) tinham menos de 18 anos e 242.996 eram do sexo feminino, dos quais 112.192 menores de 18 anos. Segundo estes números, 80.695 operários do sexo masculino têm menos de 18 anos, e 96.599 são adultos, ou seja, 23%, portanto nem sequer um quarto do total.  Nas fábricas de algodão, 56,25% do conjunto do pessoal eram mulheres, 69,5% nas fábricas de lã, 70,5% nas fábricas de sedas e 70,5% nas fiações de linho. Estes números chegam para demonstrar como os trabalhadores adultos do sexo masculino são afastados. Mas basta entrar na fábrica mais próxima para se ver a coisa efetivamente confirmada. O resultado inevitável é a alteração da ordem social existente, que, precisamente porque é imposta, tem consequências muito funestas para os operários. So­bretudo o trabalho das mulheres desagrega completamente a família; porque, quando a mulher passa cotidianamente 12 ou 13 horas na fábrica e o homem também trabalha aí ou em outro emprego, o que acontece às crianças? Crescem, entregues a si próprias como a erva daninha, entregam-nas para serem guardadas fora por um shillíng ou shilling e meio por semana, e podemos imaginar como são tratadas. É por essa razão que se multiplicam de uma maneira alarmante, nos distritos industriais, os acidentes de que as crianças são vítimas por falta de  vigilância.   As listas estabelecidas  pêlos funcionários de Manchester encarregados de verificar os acidentes indicam (segundo o relatório do Fact. Inq. Comm. Rep. ofDr. Hawkins, p. 3): em 9 meses, 69 mortes por queimaduras, 56 por afogamento, 23 em con­sequência de quedas, 67 por causas diversas, num total de 215 aci­dentes mortais, enquanto em Liverpool, que não é uma cidade fabril, houve, em 12 meses apenas, 146 acidentes mortais. Os acidentes nas minas de carvão não são incluídos para estas duas cidades. E preciso notar que o coroner de Manchester não tem autoridade sobre Sal-ford, sendo a população dos dois distritos mais ou menos idêntica. O Manchester Guardian relata em todos os números, ou quase, um ou vários casos de queimaduras. Acontece que a mortalidade geral das crianças também aumenta devido ao trabalho das mães e os fatos atestam-no de maneira alarmante.  As mulheres voltam à fábrica muitas vezes três ou quatro dias após o parto, deixando, bem enten­dido, o recém-nascido em casa. Na hora das refeições correm para casa para amamentar a criança e comer um pouco. Mas pode-se fa­cilmente imaginar em que condições se efetua este aleitamento! Lord Ashley relata as declarações de algumas operárias:

M. H. de 20 anos tem duas crianças, a menor é um bebé e o mais velho toma conta da casa e do irmão; vai para a fábrica de manhã, pouco de­pois das 5 horas, e volta às 8 horas da noite. Durante o dia, o leite cor­re-lhe dos seios a ponto de os vestidos se molharem. H. W. tem três, sai de casa segunda-feira de manhã às 5 horas e só volta sábado às 7 horas da noite. Tem então tantas coisas a fazer para as crianças que não se deita antes das 3 horas da manhã. Acontece-lhe muitas vezes estar molhada até os ossos pela chuva e trabalhar nesse estado. "Os meus seios fizeram-me sofrer horrivelmente e fiquei inun­dada de leite."


O emprego de narcóticos com o fim de, manter as crianças sossegadas não deixa de ser favorecido por este sistema infame e está agora disseminado nos distritos industriais. O Dr. Johns; inspeíor chefe dos distrito de Manchester, é de opinião que este costume é uma das causas principais das convulsões mortais muito frequentes. O trabalho da mulher na fábrica desorganiza inevitavelmente a família, e esta desorganização tem, no estado atual desta sociedade baseada na família, as consequências mais desmoralizantes, tanto para os pais como para as crianças.

AS NOVAS CONDIÇÕES DO TRABALHO E A MORALIDADE

Mas isto não é nada. As consequências morais do trabalho das mulheres nas fábricas ainda são bem piores. A reunião de pessoas dos dois sexos e de todas as idades na mesma oficina, a inevitável promiscuidade que daí resulta, o amontoamento num espaço reduzido de pessoas que não tiveram nem formação intelectual nem moral são fatos de efeito favorável no desenvolvimento do caráter feminino. O industrial, mesmo se presta atenção a isso, não pode intervir senão quando o escândalo é flagrante. Não poderia estar informado da influência permanente, menos evidente, que exercem os caracteres dissolutos sobre os espíritos mais morais e em particular sobre os mais jovens e, por conseguinte, não pode evitá-la. Ora, esta influência é precisamente a mais nefasta. A linguagem empregada na fabrica é, segundo diversas descrições dos comissários de fábricas em 1833, como "inconveniente", "má", "imprópria", etc. A situação é, em menor grau, a que constatamos em grande proporção nas cidades. A concentração da população tem o mesmo efeito sobre as mesmas  pessoas, quer seja numa grande cidade ou numa fábrica relativamente pequena. Se a fábrica é pequena, a promiscuidade é maior e as ligações inevitáveis. As consequências não se fazem esperar. Uma testemunha de Leicester disse que preferia ver a sua fílha mendigar do que deixá-la ir para a fábrica, que a fábrica é um verdadeiro inferno, que a maior parte das mulheres da vida estão naquela situação devido à sua permanência na fábrica. Uma outra em Manchester "não tem nenhum escrúpulo em afirmar que três quartos das jovens operárias de fábrica dos 14 aos 20 anos já não são virgens”. O comissário Cowell emite a opinião de que a moralidade dos operários de fábrica se situa um pouco abaixo da média da classe trabalhadora em geral e o Dr. Hawkins afirma:

É difícil dar uma estimativa numérica da moralidade sexual, mas, tendo em conta as minhas próprias observações, a opinião geral daqueles com quem falei, assim como o teor dos testemunhos que me forneceram, a influência da vida na fábrica sobre a moralidade da juventude feminina parece justificar um ponto de vista bastante pessimista.

Acontece que a servidão da fábrica, como qualquer outra e mesmo mais que todas as outras, confere ao patrão o Jus primae noctis. Deste modo o industrial é também o dono do corpo e dos en­cantos das suas operárias. A ameaça de demissão é uma razão sufi­ciente para, em 90 ou 99% dos casos, anular qualquer resistência da parte das jovens que, além disso, não têm disposições particulares para a castidade. Se o industrial é suficientemente infame (e o rela­tório da comissão cita vários casos deste género), a sua fábrica é ao mesmo tempo o seu harém. O fato de nem todos os industriais faze­rem uso do seu direito não altera nada a situação das moças. Nos princípios da indústria manufatureira, na época em que a maior parte dos industriais eram novos ricos sem educação que só respeitavam as regras da hipocrisia social, não abandonavam por nada o exercí­cio dos seus direitos adquiridos.

AS CONDIÇÕES DO TRABALHO INFANTIL

A elevada mortalidade que se verifica entre os filhos dos ope­rários, e particularmente dos operários de fábrica, é uma prova sufi­ciente da insalubridade à qual estão expostos durante os primeiros anos. Estas causas também atuam sobre as crianças que sobrevivem, mas evidentemente os seus efeitos são um pouco mais atenuados do que naquelas que são suas vítimas. Nos casos mais benignos, têm uma predisposição para a doença ou um atraso no desenvolvimento e, por consequência, um vigor físico inferior ao normal. O filho de um operário, que cresceu na miséria, entre as privações e as vicissi­tudes da existência, na umidade, no frio e com falta de roupas, aos nove anos está longe de ter a capacidade de trabalho de uma criança criada em boas condições de higiene. Com esta idade é enviado para a fábrica, e aí trabalha diariamente seis horas e meia (anteriormente oito horas, e outrora de doze a catorze horas, e mesmo desesseis) até a idade de treze anos. A partir deste momento, até os dezoito anos, trabalha doze horas. Aos fatores de enfraquecimento que persistem junta-se também o trabalho. E verdade que não podemos negar que uma criança de nove anos, mesmo filha de um operário, possa su­portar um trabalho cotidiano de seis horas e mais sem que daí resultem para o seu desenvolvimento efeitos nefastos visíveis, de que este trabalho seria a causa evidente. Mas temos que confessar que a per­manência na atmosfera da fábrica, sufocante, tímida, por vezes de um calor morno, não poderia em qualquer dos casos melhorar a sua saúde. De qualquer maneira, é dar prova de irresponsabilidade sacrificar à cupidez de uma burguesia insensível os anos de vida das crianças, que deveriam ser exclusivamente consagrados ao desenvolvimento físico e intelectual, e privar as crianças da escola e do ar puro para as explorar em proveito dos senhores industriais. Claro, a burguesia diz-nos: "Se não empregarmos as crianças nas fábricas, elas ficarão em condições de vida desfavoráveis ao seu desenvolvimento", e no conjunto este fato é verdadeiro. Mas que significa este argumento, posto no seu justo lugar, senão que a burguesia coloca primeiro os filhos dos operários em más condições de existência e que explora em seguida estas más condições em seu proveito? Ela evoca um fato de que é tão culpada como do sistema industrial, justificando a falta que comete hoje com aquela que cometeu ontem. Se a lei sobre as fábricas não lhes prendesse um pouco as mãos, verificaríamos como estes burgueses "bondosos" e “humanos", que no fundo não edificaram as fábricas senão para o bem dos operários, tomariam a defesa dos interesses dos trabalhadores. Vejamos um pouco como eles agiram antes de serem vigiados pelos inspetores de fábrica! O seu próprio testemunho, o relatório do  Factories Inquiry Commission, de 1833, deve confundi-los.

O relatório da Comissão Central constata que os fabricantes raramente empregavam crianças de cinco anos, frequentemente as de seis anos, muitas vezes as de sete anos e a maior parte das vezes as de oito ou nove anos; que a duração do trabalho atingia, por vezes, 14 a 16 horas por dia (não incluindo as horas das refeições), que os industriais toleravam que os vigilantes batessem e maltratassem as crianças, e eles próprios agiam muitas vezes do mesmo modo; relatassem mesmo o caso de um industrial escocês que perseguiu a cavalo um operário de dezesseis anos, que fugira, trouxe-o de volta obrigando-o a correr diante dele à velocidade do seu cavalo no trote, batendo-lhe continuamente com um grande chicote. Nas grandes cidades, onde os operários mais resistiam, é verdade que tais casos eram menos frequentes. No entanto, mesmo esta longa jornada de trabalho não aplacava a voracidade dos capitalistas. Era preciso por todos os meios fazer com que o capital investido nas construções e maquinas fosse rentável, era necessário fazê-lo trabalhar o mais possível. É por isso que os industriais introduziram o escandaloso sistema de trabalho noturno. Em algumas fábricas havia duas equipes de operários,  cada qual  suficientemente  numerosa para fazer funcionar toda a fábrica; uma trabalhava as doze horas do dia, a outra as doze horas da noite. Não é difícil imaginar as consequências que fatalmente teriam sobre o estado físico das crianças, e mesmo dos adolescentes e adultos, esta privação permanente do repouso noturno, que nenhum sono diurno poderia substituir. Sobre excitação do sistema nervoso ligada a um enfraquecimento e a um esgotamento de todo o corpo, tais eram as consequências inevitáveis.

Engels, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglater­ra. São Paulo, Global, 1986, pp. 165-6, 170-1 e 172-4.

Nenhum comentário:

Postar um comentário