Resenha de VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Gledson Ribeiro de Oliveira- Doutorando em Sociologia (UFC), Mestre em História do Brasil (UFPE). Pesquisador do Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política (NERPO). Bolsista da CAPES. Membro do Instituto Praeservare – preservação do patrimônio cultural. Contato: gled.yeshua@gmail.com
Recém traduzida para o leitor brasileiro, a obra do historiador e arqueólogo francês Paul Veyne é menos um estudo sobre o cristianismo do século IV que uma reflexão sobre as razões do imperador Constantino em firmar e legitimar uma religião de salvação que tinha como profissão de fé adorar um deus-camponês encarnado de nome Jesus, que depois de morto nos anos 30 desta era, ressurgiu entre os seus seguidores e ascendeu ao „reino dos céus‟. Em seus onze capítulos, Constantino é a figura chave do triunfo do cristianismo e sua conversão “um dos acontecimentos decisivos da história ocidental.” (p. 79.) A importância reservada pelo autor ao imperador pode ser mensurada na provocativa epígrafe do primeiro capítulo O salvador da humanidade: Constantino. Resumindo em uma pequena frase o objetivo geral do livro poder-se-ia dizer que Paul Veyne busca compreender como Constantino ajudou a fabricar o cristianismo enquanto o cristianismo o fabricava.
Para isso o ponto de partida do autor é a conversão do imperador após um sonho no qual o deus cristão revelou-lhe o crisma [letras X e P superpostas e cruzadas]; símbolo da vitória do Cristo na batalha da Ponte Mílvio (2). Um ato aparentemente particular, realizado “por sua própria cabeça” como diz Paul Veyne (p. 131), mas com repercussões profundas na história. Buscando entender a motivação dessa conversão, Paul Veyne faz em dois capítulos um percurso sobre o que chamou de duas obras-primas que influenciaram a decisão de Constantino: a ”natureza‟ do cristianismo e a Igreja. Considerou que o cristianismo possuía uma “superioridade relativa” se comparado ao que chamou de paganismo por ser um discurso religioso original para a época (p. 69). A nova religião inventou um deus de amor, datado e exclusivista, cuja história fora oralmente transmitida, selecionada e registrada em verso e prosa em um “best seller” – a Bíblia – em que se narrou a criação, redenção e a paixão mútua entre o Cristo e a humanidade (p. 40). Já a segunda obra-prima, a Igreja, uma assembléia de crentes divididos hierarquicamente entre um corpo de mistagogos e leigos e estruturada por um sistema de ritos e crenças, inovou por exigir que cada um de seus membros seguisse uma profissão de fé, que fossem militantes pelo Cristo.
(2) Na batalha contra Maxêncio no ano de 312, às margens do rio Tibre na Itália, os soldados usaram a crisma nos escudos. Constantino marcou-o em seu elmo.
Destarte, para Veyne, é exatamente a afinidade eletiva - para lembrar uma expressão de Max Weber - entre a personalidade de Constantino e o profundo “sentido de poder e de organização [do cristianismo] muito próximo do seu”, que o arrebatara, levando-o a adotar “uma religião rejeitada por nove décimos de seus súditos” (p. 109). Se um grande imperador precisava de um grande deus, a sedutora mitologia cristã com seu convite a participar de um projeto sobrenatural para “salvar a humanidade” era um discurso bem ao gosto do Imperador; principalmente porque ele poderia liderá-lo na terra como seu chefe espiritual.
Constantino cria que havia sido escolhido pelo deus cristão para desempenhar o papel mais importante desde Adão e Eva (p. 90). Para cumprir esse „verdadeiro chamado‟, e ao contrário de uma leitura bastante difundida, Paul Veyne lembra que ele assumiu a posição de “protetor e propagandista” (p. 138) concedendo benefícios – templos, por exemplo – e privilégios – fiscal e arbitral – que as religiões ditas pagãs já gozavam; ou seja, Constantino teria de alguma forma apenas colocado o então perseguido e mal-quisto cristianismo em equidade com o paganismo. Convertido, porém habilidoso, Constantino pendulou entre o cristianismo e as demais religiões. Manteve a fachada pagã do Império para acalmar a aristocracia e fez do cristianismo sua religião privada, não buscando converter seus súditos.
O Império continuou com seus cultos públicos a outros deuses e a Europa assim permaneceu até o século VI em vários territórios.
A valorização das representações que Constantino fazia de si mesmo e do cristianismo é uma opção metodológica que faz Veyne ser um crítico dos autores que entendem o imperador como um calculista político em busca de “alicerces metafísicos da unidade e da estabilidade interior do Império” (p. 79). Sua crítica tem endereço certo: a historiografia dita por ele “marxistizante” ao estilo do historiador Yvon Thébert “e de muitos outros”. No dizer do historiador foi Constantino que pôs o trono‟ a serviço do “altar‟ e não o contrário, pois ele de fato queria que as pessoas se salvassem (p. 87). Conseqüência maior dessa experiência foi à definitiva entrada da religião na política e no poder com o estabelecimento da futura e tradicional prática monárquica da religião do trono. Com ironia, pergunta-se no capítulo dez se as razões de Constantino não seriam mais profundas, ideológicas. Para ele, não! A obediência a Constantino e a manutenção da ordem imperial não precisou ser imposta aos súditos por uma mensagem ideológica cristã. Constantino foi respeitado e obedecido “por lealdade” e pela posição social que ocupava em relação aos seus súditos que lhe conferia eficácia simbólica a suas palavras e ações.
É notório que sua ironia elegante e os não raros trocadilhos “igreja” e “partido único”, “Lênin-Trotsky” e “profetas iniciais” etc., aparecem como resíduos de sua frustrante experiência como membro do Partido Comunista Francês nos anos 1950 - Retorno do recalcado! – tendo como secretário de célula ninguém menos que Emmanuel Le Roy Ladurie (3).
(3) Nota 32, página 57.
Veyne retoma também outros temas clássicos das Ciências Sociais como a irredutibilidade da religiosidade e o laicismo. Como Georg Simmel o autor também vê na religiosidade (4) uma “disposição irredutível e fundamental da alma‟ que não se explica por causas psicológicas – cita Piaget – e não deriva ou está vinculado a formas culturais e institucionais pelas quais se travesti no processo histórico. Neste caso, a vitória do cristianismo não se deu pelo medo da finitude, insegurança infantil ou “necessidade de consolação e ópio”. É na originalidade do projeto de um “deus de amor” que reside sua força. Resta saber, como sugere a sociologia de Simmel, se Veyne também vê na religiosidade um dado permanente da condição humana.
(4) No subtítulo A religião é uma qualidade irredutível, capítulo 2, Paul Veyne escreve “religião‟ e não “religiosidade‟. Contudo em Simmel é a religiosidade que é uma “disposição irredutível e fundamental da alma‟ pois nem toda religiosidade desemboca em uma religião. Trata-se uma leitura própria de Paul Veyne ou de uma questão de tradução?
Já a celebrada idéia de separação entre Igreja e Estado não é para Veyne um mérito do cristianismo, mas dos próprios césares. O clássico “Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” já era modus operandi no Império. Os pagãos não precisaram do Cristo para saber “que Deus e César eram dois” pelo simples fato de que eles não se confundiam na sociedade romana (p. 218). Vai além. No ano da publicação do livro na França estava em debate a referência ou não ao nome de Deus na Constituição Européia (5). Como bom francês, e tomando como exemplo os que defenderam as “raízes cristãs da Europa”, Veyne repercutiu o tradicional laicismo de seu país com uma afirmação categórica: não é o cristianismo que está na Europa e sim a Europa que está no cristianismo. A Europa fora sincrética em seu começo e o cristianismo há muito deixara de ser o princípio-eixo da moral e da cultura. Tudo que se defende hoje na Europa é diametralmente oposto ao que o catolicismo defendeu e defende – “O caso mais complexo do protestantismo permanece totalmente à parte”, ressalvou (p. 232).
(5) Assinada em 29 de outubro de 2004, na cidade de Roma.
Ademais, o livro remete a uma questão contemporânea importante: o cristianismo ainda tem uma gramática própria a oferecer? A “pauta positiva‟ do cristianismo – questão social, preconceito racial, discurso ambiental, liberdade, democracia etc. - é uma gramática de conceitos e práticas muitas vezes apropriadas do mundo secular. O cristianismo como uma “casa velha” na qual se habita sem a convicção dos velhos moradores é uma boa metáfora de Veyne para explicar o estado atual da religião na Europa. O rearranjo do campo religioso com o surgimento de crenças e religiões desinstitucionalizadas é um dos efeitos dos sérios problemas de transmissão da linhagem religiosa do catolicismo europeu. Nesses termos, há de se concordar com ele que ser “cristão‟ pode ter se tornado, de fato, um mero “parônimo hereditário” não só na Europa, mas também na América Latina (p. 235).
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