sábado, 21 de maio de 2011

Contra os abusos sexuais

Sedentos de justiça e vingança, escravos recorriam à Inquisição para denunciar sodomia de seus senhores no século XVIII      
 Ronaldo Vainfas
O angola Joaquim Antônio não sabia falar português. Mas os maus-tratos de seu senhor eram tantos que ele foi assim mesmo se apresentar aos inquisidores do Santo Ofício para denunciá-lo. Essa era uma das formas de resistência adotadas pelos escravos no Brasil Colônia. Não se tratava de uma atitude usual, antes de tudo porque as agressões aos escravos não eram delito da alçada inquisitorial.

Também a Inquisição não costumava dar grande crédito às acusações de cativos, e eles sabiam disso. Se a Inquisição preferisse arquivar o caso, o risco de uma retaliação senhorial era grande.

Mas o caso de Joaquim é bom exemplo deste tipo de denúncia, feita na Visitação do Santo Ofício ao Grão-Pará e Maranhão no século XVIII. Em 1767, o escravo se apresentou ao visitador acusando o senhor Francisco Serrão de Castro de forçar dezenas de escravos à sodomia com grande truculência. Joaquim, por meio de um intérprete, contou que Serrão de Castro perseguia diversos escravos, solteiros ou casados, jovens ou moleques de pouca idade, forçando-os ao coito anal. Ficavam todos muito feridos e “inchados na parte traseira”, e, segundo o denunciante, cinco deles morreram depois desses atos. Joaquim deu os nomes de várias testemunhas que poderiam confirmar o que se passava na fazenda de Francisco Serrão.

O visitador se dispôs a apurar o caso, ao menos de início, convocando João, escravo proveniente do Congo. Este não só confirmou os atos de Francisco Serrão como acrescentou que o senhor era mau cristão, impedindo os escravos de frequentar a missa e de “rezar o terço, como noutras partes se costuma fazer”. No dia seguinte apareceu outro angola, de nome João, escravo dos carmelitas, mas este sequer conseguiu fazer sua acusação. O visitador suspendeu o processo. Na página em que se registrava o depoimento do cativo vê-se um grande risco, emendando a última letra escrita até o final da folha.

Tudo indica que os escravos da fazenda paraense e de outros sítios montaram uma estratégia para dar um basta nas violências de Francisco Serrão. Fica a dúvida se tais violências eram perpetradas em meio a atos sexuais, como consta das denúncias, ou se os cativos optaram por acusar o senhor de tais atos por ser a sodomia um delito de foro inquisitorial. Era mais viável pegá-lo por aí. De todo modo, o visitador optou por deixar Francisco Serrão em paz. Pode-se bem imaginar a revanche do senhor paraense contra os escravos que o acusaram.

Ainda no século XVIII, o padre secular José Ribeiro Dias não teve a mesma sorte. Padre José era também minerador em Paracatu, comarca de Sabará, onde possuía duas datas – lotes de terra destinados à mineração – para extração de ouro, algumas roças e 27 escravos. Sua conduta era motivo de grande escândalo na vila de Ribeirão do Carmo, pois não só assediava seus próprios escravos, mas também outros rapazes. João Luiz, aprendiz de um boticário, o jovem Carlos, músico da vila, e muitos outros foram seduzidos pelo assanhado cura das Gerais.

Quem pôs fim à farra do padre José Ribeiro foi o mulato Felipe de Santiago, seu escravo, que tomou a iniciativa de denunciá-lo ao visitador enviado pelo bispo de Mariana à região, em novembro de 1743. Felipe disse tudo o que sabia do sacerdote, sublinhando seu caso particular. Contou que por diversas vezes tinha sido molestado pelo padre, que o “violentava com o poder e respeito de senhor”, enquanto ele “o obedecia com o medo de escravo que é”. O mulato Felipe tinha plena consciência de seu lugar na sociedade colonial e de como o cativeiro podia implicar, como no caso, abusos sexuais.

O visitador eclesiástico resolveu agir. Instruiu o processo junto ao Santo Ofício, que mandou prender o padre, com sequestro de bens. Enviado a Lisboa, padre José admitiu todas as culpas e pediu todos os perdões, mas de nada adiantou. Em 1747, foi condenado a sair em auto de fé, espetáculo público em que os condenados ouviam suas sentenças após desfilarem pelas ruas de Lisboa em procissão. Mas a pena do padre não se limitou ao vexame de sair no auto. Foi condenado ao confisco de bens, à perda das ordens e dos benefícios eclesiásticos e, por último, à pesada pena de dez anos de trabalhos forçados nas galés do rei.

Padre José cumpriu boa parte da sentença. No final de seu processo, encontram-se petições em que o condenado suplicava ao Santo Ofício para suspender a pena, alegando que não suportava mais as enfermidades e infortúnios de seu degredo. Corria o ano de 1754. O ex-padre já tinha cumprido sete anos nas galés. A Inquisição mandou um médico para examinar o condenado, e o laudo não deixou dúvidas sobre seu miserável estado: havia tempos tinha “uma perna aleijada, que lhe custa andar, não só pela pouca firmeza que nela tem, como pelos duros ferros com que a outra se acha ligada…”.

O Santo Ofício de Lisboa achou por bem liberar o condenado dos três anos que ainda tinha que cumprir nas galés. Mas não restaurou as ordens sacras solicitadas por José Ribeiro Dias, que morreu na miséria. Assim terminou a vida de um membro comum da classe senhorial de Minas Gerais, homem que gostava de violentar escravos, explorar ouro e, quem sabe, ministrar ofícios divinos. Do mulato Felipe, seu denunciante, nada se sabe, exceto que sua vingança deu certo.

Ronaldo Vainfas é professor de História na Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos Pecados (Nova Fronteira, 1998).

Saiba Mais - Bibliografia

MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.

MOTT, Luiz. O sexo proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988.

 FONTE: http://www.revistadehistoria.com.br

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