Setenta anos após ser lançada ao ostracismo, distrito de  São João Marcos inaugura hoje o primeiro centro arqueológico urbano do  Estado
                                  Flávia Salme, iG Rio de Janeiro
 
       Foto: Acervo Light   
A ingreja da Matriz. Reza a lenda que o único homem que aceitou participar da explosão da capela ficou corcunda
Da riqueza e desenvolvimento à miséria. Do posto de “exemplo  intacto de arquitetura colonial” a uma área submersa e reduzida a  escombros, o pequeno distrito fluminense de São João Marcos jamais  esmoreceu. Lendas parecem ter surgido como escudo de proteção ao lugar.  “O homem que implodiu a igreja da Matriz ficou corcunda”, reverbera uma  delas. Nesta quinta-feira (9), a cidade será reinaugurada. Não como  porto seguro para quem busca casa no campo, discos e livros. Adornada  por ruínas que se mantiveram fiéis à História, será o primeiro sítio  arqueológico urbano do Rio.
Depois de ostentar a glória de ter sido o segundo município mais  populoso do Estado, com cerca de 20 mil habitantes (no século 19), e de  ser o primeiro do País tombado pelo valor arquitetônico de suas  construções pelo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico  Nacional (Sphan), São João Marcos – na região do Vale do Paraíba – foi  esvaziado para dar lugar a uma barragem (no século 20). Na época, 1940, o  presidente Getúlio Vargas queria superar os entraves que impediam o  progresso da capital.
 
       Foto: Acervo Light   
O que sobrou da igreja
Era preciso gerar energia elétrica e melhorar o abastecimento de água  do então distrito federal, e coube a São Marcos dar à luz esse sonho.  Engenheiros da Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company, a  companhia de eletricidade do Estado, concluíram que a melhor opção seria  criar uma represa e uma hidrelétrica na região. Mas São Marcos estava  no meio do caminho. Para o projeto ir à frente, seria necessário inundar  a maior parte da cidade (pelo menos 90 fazendas).
Para afugentar os moradores que insistiam em ficar na parte que não  foi inundada, a arquitetura local – “destombada” pelo próprio Vargas –  foi pelos ares. Nem o cemitério ficou imune (este, em vez de implodido  foi remanejado). “Depois disso apareceram certas árvores na cidade,  conhecidas como mulungus, que dão flores vermelhas. A população local  acredita que é o sangue de moradores tristes com o fim do lugar”, conta  Luiz Felipe Younes, coordenador do parque.
“Poucos sabem o que aconteceu”, diz patrocinador
 
       Foto: Acervo Light   
Teatro Tibiriça
O hoje distrito de Rio Claro já foi o município mais rico do  Rio. Produzia anualmente 2 milhões de arrobas de café. Fundado em 1733,  por bandeirantes, não levou muito tempo para crescer.
Em pleno século 18 dispunha de teatro, escola, delegacia e estrada de  pedra que recebiam artistas de óperas e músicos conhecidos naquele  período. Famílias abastadas contavam com preceptores estrangeiros para  garantir educação a seus rebentos. Barões e escravos tinham suas  próprias igrejas. O bem-estar da população não era geral mas garantiria  um bom IDH, se o índice já existisse.
Com a abolição, São João Marcos sofreu o primeiro golpe: perdeu  espaço para São Paulo, que passou a dominar a produção cafeeira. Seguiu  ladeira abaixo e, no século seguinte, foi obrigada até a abrir mão do  status de cidade. O Sphan bem que tentou dar uma força com o tombamento,  mas não teve jeito. As águas rolaram.
“Poucos sabem o que aconteceu a essa cidade que, por estar situada às  margens da Barragem de Ribeirão das Lajes, teve sua história definida  por decisões do governo Vargas”, diz, por e-mail, Jerson Kelman,  presidente da Light, empresa que sucedeu a Rio de Janeiro Tramway, Light  and Power Company. A iniciativa de preservar as ruínas foi da empresa e  recebeu apoio – via incentivos fiscais – do governo do Rio. Foram  investidos R$ 5,8 milhões.
 
       Foto: Acervo Light   
E o que restou do teatro
Terra natal do ex-prefeito Pereira Passos e do ex-ministro e imortal  Ataulfo de Paiva, São João não perde seus marcos. Abandona de vez a  pecha de cidade fantasma e se torna a primeira no Estado a ser  totalmente resgatada por meio de pesquisas históricas e trabalhos  arqueológicos. “É um projeto pioneiro que opera a mágica de recuperar  uma cidade desaparecida, mas de história tão rica, através de atividades  de arqueologia, museografia e museologia”, afirmou por e-mail a  secretária de Cultura Adriana Rattes.
De acordo com o coordenador do parque, Luiz Felipe Younes, apesar  da construção da barragem e das implosões, as construções não ficaram  completamente sob águas ou encobertas pela Mata Atlântica - embora 72  fazendas permaneçam submersas. Segundo ele, os turistas terão a  oportunidade de viajar no tempo durante um circuito pela antiga cidade.
A visitação inclui o ossuário da Igreja Matriz, parte da estrutura do  Teatro Tibiriçá, trechos da antiga Estrada Imperial e suas pontes de  pedra, além de cerca de duas mil peças descobertas nas escavações como  louças, moedas, objetos pessoais, porcelanas e tijolos mais brutos.
O parque, localizado a 128 km da capital fluminense, conta com 930  mil metros quadrados. São 3 quilômetros com sinalização (de posição,  ambiental, histórica e arqueológica). Historiadores, museólogos,  arqueólogos, arquitetos, paisagistas, passaram quatro anos dedicados à  missão.
Conhecer o lugar não custa nada. A entrada é franca. As visitações  poderão ser feitas de quarta-feira a domingo, das 10h às 16h. Será  preciso percorrer dois quilômetros da Estrada Imperial (que ligava Minas  Gerais à cidade litorânea de Mangaratiba, no Rio).
Além de trilhas e das ruínas históricas da ex-cidade – passeio que  dura cerca de 40 minutos –, os turistas encontrarão um Centro de Memória  que conta de forma lúdica o passado, além dos resultados das pesquisas  históricas e arqueológicas. Há ainda um anfiteatro e cafeteira.