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Não é de hoje que Tiradentes e sua turma da Inconfidência Mineira são convocados para estrelar filmes em que combatem o mal, personificado por algum elemento da coroa portuguesa. Desde a proclamação da República, eles se tornaram mártires do país e - um de seus papéis mais constante - foram parar no cinema. Joaquim José da Silva Xavier, junto ou separado dos demais inconfidentes, aparece em pelos menos quatro longas-metragens, segundo o IMDb, um dos maiores bancos de dados de cinema no mundo. Em breve, se depender do cineasta Marcelo Gomes, de “Cinema, urubus e aspirinas”, serão cinco.
A primeira referência ao alferes no IMDb é em um curta de 1918, denominado “Tiradentes”, assinado por Alberto Botelho, “talvez o mais prolífico cineasta de sua época”, segundo as palavras de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, na “Enciclopédia do cinema brasileiro”. No livro, Botelho, junto com o irmão Paulino, é descrito como um dos pioneiros dos cinejornais brasileiros, e cinegrafista em diversas ficções. Nenhuma informação, porém, sobre o filme em si.
Trinta anos depois, foi a vez de Joaquim José da Silva Xavier ser retratado em seu primeiro longa por uma das pioneiras do cinema nacional: Carmen Santos. “Inconfidência mineira” teve sua gestação bastante demorada e demorou dez anos para se concretizar, chegando às telas só em 1948. Trazia como o mais famoso inconfidente o ator Rodolfo Mayer, no que seria o seu principal papel na sua carreira no cinema, e a própria Carmen, como a poetisa Bárbara Heliodora, mulher de Alvarenga Peixoto. Segundo o site oficial de Mario Peixoto, o autor do cultuado “Limite” teria feito uma versão do roteiro, que não foi aproveitado, ficando o script a cargo de outro ícone dos primórdios de nossa cinematografia: Humberto Mauro, em parceria com o jornalista, dramaturgo, cronista e roteirista Henrique Pongetti. Cláudio Aguiar Almeida, em seu livro “O cinema como ‘agitador de almas’: Argila, uma cena do Estado Novo”, explica que a produção desse filme fazia parte de tipo de contrapartida por ocasição do apoio do governo à produtora de Carmen, Brasil Vita Film. Segundo Almeida explica, era obrigatória a exibição de um número predeterminado de longas-metragens por ano. Mas, em vez de optarem por uma produção de baixa qualidade, Carmen teria se unido a “grandes nomes” – conforme a revista “A cena muda” – “para prestigiar um filme de arte”. Os grandes nomes eram, além de Mauro e Pongetti, Roquette-Pinto e Affonso de Taunay. O filme era visto como capaz de educar o povo “em política e em história do Brasil”. Almeida reproduz a descrição de Carmen sobre Tiradentes: um “homem simples do povo” que “não tinha, é fato, a educação humanística de outros inconfidentes” e que vivia “em seu íntimo, de modo profundo e absoluto, a agonia imensa do seu povo”. Ainda segundo Almeida, Carmen “fazia coro com Getúlio” ao comparar Tiradentes a Jesus. Infelizmente, o filme foi queimado em um incêndio na produtora de Carmen.
Em 1972, aparece a versão cinematográfica mais famosa da conjuração, em “Os inconfidentes”, de Joaquim Pedro de Andrade. Com diversas passagens líricas, em que os poetas que faziam parte do grupo conversam por meio de versos, ou com um embate entre todos os inconfidentes já presos, ou ainda na escolha de uma paleta de cores fortes, com roupas rosas, verdes, e cortes extravagantes, o longa que traz José Wilker no papel de revolucionário Tiradentes – bem ao gosto do Cinema Novo – diz ter apoiado seu roteiro nos documentos dos julgamentos e na produção literária da época. Um dos detalhes curiosos sobre essa produção é a opção sobre o destino de Cláudio Manuel da Costa, interpretado por Fernando Torres. Se até hoje a historiografia não é conclusiva sobre se o autor de "Vila Rica" cometeu suicídio ou foi morto – inclusive o perfil escrito recentemente pela historiadora e conselheira da RHBN Laura de Mello e Souza deixa a questão em aberto – Andrade opta por afirmar que Cláudio Manuel se matou. No longa, ele é o personagem mais taciturno e não aguenta a pressão de ver o movimento se desmanchar e a prisão dos seus integrantes. Tiradentes, ao contrário, é quase um Che Guevara, avant la lettre, que combate as injustiças de maneira romântica, não se importando com a sua própria vida, demonstrando a influência da época em que foi filmado no longa.
Depois foi a vez de Geraldo Vetri, ainda na década de 1970, de rodar “Tiradentes, o mártir da independência”. Egresso da TV Tupi, ele usava atores com quem estava acostumado a trabalhar. Para o papel título, escolheu Adriano Reys. Há pouca informação sobre o longa, que é visto como uma obra menor no diretor, um sucesso na televisão.
Mais recentemente, em 1999, Oswaldo Caldeira levou para as telonas sua versão do mito em “Tiradentes”, com Humberto Martins como protagonista. O professor Renato Cordeiro Gomes em seu livro “Literatura, politica, cultura, 1994-2004” defende que Caldeira segue um caminho proposto por “Carlota Joaquina”, na chamada Retomada, fugindo do realismo e propondo um estranhamento entre imagens e som. Segundo Gomes, o filme se baseia numa pesquisa cuidadosa, mas toma liberdades como mostrar um Tiradentes dançando ao som de “Blowin’ in the wind”, de Bob Dylan. “O filme projeta um líder visionário e utópico, revolucionário inquieto, aventureiro, caçando bandidos e escravos fugitivos no meio da floresta, desbravando o interior, com a construção de estradas, pesquisando minérios e planejando um sistema de abastecimento de água para o Rio de Janeiro. Além de toda esse energia, o herói aparece também como grande amante”, escreve ele.
Agora, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes, que rodou com Karim Aïnouz “Viajo porque preciso, volto porque te amo” em 2009, recebeu a incumbência de levar novamente Tiradentes às telonas, por meio de um projeto sobre a vida das figuras mais relevantes na luta de emancipação da América Latina. Foram escolhidos: José Martí, em Cuba; José de San Martín, na Argentina; José Artigas, no Uruguai; Miguel Hidalgo y Costilla, no México; Bernardo O’Higgins, no Chile; Túpac Amaru, no Peru; Simón Bolívar, na Venezuela e Colômbia, além de Tiradentes, no Brasil. Os quatro primeiros já estão prontos, enquanto os demais estão em produção. Segundo a explicação do projeto, a proposta é retratar não somente seus feitos históricos, mas também “suas facetas mais humanas e suas ideologias de caráter libertador”.
“Decidi fazer um filme que primeiro destruísse essa ideia do herói Tiradentes e que construísse o Tiradentes como uma pessoa comum, um brasileiro comum querendo entender o que é ser brasileiro, querendo entender o que é viver essa vida de protético, onde ele abre a boca dos brasileiros e a partir da boca dos brasileiros, metaforicamente, ele entende melhor o que é esse processo de construção da identidade nacional e ao mesmo tempo, [trabalha] como alferes, como soldado da Coroa Portuguesa, servindo à Coroa, ao colonizador, ao opressor”, contou por e-mail Marcelo Gomes, que quer explorar essa dualidade na personalidade de Joaquim José da Silva Xavier. Gomes acrescenta que há muita controvérsia sobre o personagem.
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- “Havia pessoas que diziam que ele era uma pessoa simples, tranquila, que falava pouco, muito recatado. Outras pessoas diziam que ele era um fanfarrão, que falava alto, que gritava muito, tinha aparência de louco, muito cachaceiro e mulherengo. A gente leu de tudo. Depois dessa leitura, decidimos construir o nosso Tiradentes. E o nosso Tiradentes era essencialmente bem brasileiro. Ele tinha esse elemento de humor muito grande, peculiar ao brasileiro. Ele era uma pessoa que gosta de festas, que é outra característica nossa”, escreveu ele, afirmando que ao final vai submeter o roteiro pronto a um historiador para fazer uma checagem histórica.
Gomes explica que evitará qualquer santificação de Tiradentes, defendendo que o que mais lhe interessa é a construção da consciência política do personagem, e a ambiguidade na personalidade profissional e pessoal do alferes-protético, e todas as suas consequências. A produção deve fazer um recorte histórico antes da conjuração e ter como pano de fundo a enorme confluência de pessoas para as Minas Gerais. O cineasta conta também que, por causa dessa escolha, nem será utilizado a alcunha de Tiradentes, apenas a de Joaquim José. O diretor fala ainda que pretende impedir a ideologização de Tiradentes. Na sua juventude, ele cita, o principal personagem da inconfidência era muito associado à direita pelos militares.
“Com esse filme, restaurando o personagem comum e nenhum herói, eu acho que é uma forma de a gente fazer as pazes com esse herói”, conclui.
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